De cabeça para baixo
O jovem ator, em uma releitura pra lá de dramática da
paixão, foi crucificado de cabeça para baixo.
O
padre não queria de jeito nenhum. Além de alterar a narrativa canônica, alguém
poderia se machucar. O rapaz, entretanto, insistiu. Afirmou que aquela cena
iria mexer com os corações. Tornaria a fé mais ardente, acenderia a chama
transformadora na consciência de cada pessoa da platéia. E foi o que se deu,
mesmo com o padre dando de encontra.
Nosso
ator era um garoto da escola, membro do nosso movimento jovem salesiano,
entusiasmado. Já havia participado de outras montagens. Era sempre aquele que chorava.
Vertia lágrimas verdadeiras até nos ensaios. Incorporava os personagens. Se era
soldado romano, chicoteava, bicudava a horda de cristãos em aglomerações
subversivas. Às vezes o diretor tinha que parar a cena e advertir o legionário
que aquilo era só pra dizer, não era de vera não. Fizesse o cristão, chegava a
sangrar em penitências ou provações. Quando interpretou Nosso Senhor, naquela
sexta pra sábado de Aleluia, foi a conta justa para a superação. Queria passar
todo o sofrimento, a angústia, a degeneração da carne, a mutilação do corpo. E
lá fomos nós da contrarregragem dar o jeito para montar uma cruz de ponta-cabeça
e ajeitar, todo sem jeito, o corpo do nosso ator naqueles dois pedaços de
madeira cruzados. Amarrar bem amarradinho e depois erguer aquele símbolo da fé
cristã, de cabeça para baixo e da forma mais real possível. Preocupação e
expectativa. A platéia viu a cena num silêncio! Quando ele deu o sinal de
desfalecimento, vieram os efeitos especiais. Trovões, relâmpagos. Um
liga-desliga luz e a cortina foi fechada. Desamarramos o pequeno e quando
reabrimos a cortina já era a glória da ressurreição. Cantos alegres,
comemoração e fim.
O
padre ficou por aqui com a audácia, mas deu tudo certo. Ao fim do espetáculo
saímos todos muito satisfeitos da apresentação, orgulhosos, meio estrelas da
noite, meio excomungados pela santa e pecadora igreja. Nos permitimos aliviar a
pressão, numa rodada de salgadinhos maravilhosos que eram vendidos na
baiuquinha muito da sua espetacular que havia na Alferes Costa pertinho da Bambu.
Tudo pago pelo nosso diretor, já totalmente apartado do calvário que enfrentara
nas últimas semanas.
Passados
uns dias, reunimos o grupo para fazer a avaliação dos eventos da pastoral
durante a Semana Santa. O padre iniciou falando da nossa peça. Não era de
censurar. Inquietou-se com o risco de acidente, no dia, mas ali, avaliando
melhor, explorou a doutrina, adiantou apreensões dogmáticas que deixamos de
lado, na apresentação. Salientou que o fervor da fé se traduz pela esperança. E
que nós utilizamos nossa energia para explorar de forma extremamente violenta,
a desesperança. Usamos um tempo imenso machucando, oprimindo, negando a vida na
cena da crucificação e, segundinhos apenas valorizando a vida plena e justa, na
cena da ressurreição. Na próxima tínhamos que rever nosso conceito de fé,
aconselhou.
No
domingo de Páscoa, este, peguei um carro de passeio. Bíblia em cima do painel
num canto, livro de um doutrinador de outro. Rádio nas alturas. Mexia no
celular todo tempo. O fiel condutor abusou da velocidade em um trajeto de pouco
mais de 5km. Cortou outros carros, mudava de faixa constantemente, fez
conversão irregular. Atrapalhou o trânsito, foi buzinado, buzinou e avançou um
sinal na insalubre Augusto Montenegro. Lembrei do padre amigo: todos nós temos
que rever nosso conceito de fé.
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