sábado, 23 de abril de 2022

crônica da semana - de cabeça para baixo

 De cabeça para baixo

O jovem ator, em uma releitura pra lá de dramática da paixão, foi crucificado de cabeça para baixo.

O padre não queria de jeito nenhum. Além de alterar a narrativa canônica, alguém poderia se machucar. O rapaz, entretanto, insistiu. Afirmou que aquela cena iria mexer com os corações. Tornaria a fé mais ardente, acenderia a chama transformadora na consciência de cada pessoa da platéia. E foi o que se deu, mesmo com o padre dando de encontra.

Nosso ator era um garoto da escola, membro do nosso movimento jovem salesiano, entusiasmado. Já havia participado de outras montagens. Era sempre aquele que chorava. Vertia lágrimas verdadeiras até nos ensaios. Incorporava os personagens. Se era soldado romano, chicoteava, bicudava a horda de cristãos em aglomerações subversivas. Às vezes o diretor tinha que parar a cena e advertir o legionário que aquilo era só pra dizer, não era de vera não. Fizesse o cristão, chegava a sangrar em penitências ou provações. Quando interpretou Nosso Senhor, naquela sexta pra sábado de Aleluia, foi a conta justa para a superação. Queria passar todo o sofrimento, a angústia, a degeneração da carne, a mutilação do corpo. E lá fomos nós da contrarregragem dar o jeito para montar uma cruz de ponta-cabeça e ajeitar, todo sem jeito, o corpo do nosso ator naqueles dois pedaços de madeira cruzados. Amarrar bem amarradinho e depois erguer aquele símbolo da fé cristã, de cabeça para baixo e da forma mais real possível. Preocupação e expectativa. A platéia viu a cena num silêncio! Quando ele deu o sinal de desfalecimento, vieram os efeitos especiais. Trovões, relâmpagos. Um liga-desliga luz e a cortina foi fechada. Desamarramos o pequeno e quando reabrimos a cortina já era a glória da ressurreição. Cantos alegres, comemoração e fim.

O padre ficou por aqui com a audácia, mas deu tudo certo. Ao fim do espetáculo saímos todos muito satisfeitos da apresentação, orgulhosos, meio estrelas da noite, meio excomungados pela santa e pecadora igreja. Nos permitimos aliviar a pressão, numa rodada de salgadinhos maravilhosos que eram vendidos na baiuquinha muito da sua espetacular que havia na Alferes Costa pertinho da Bambu. Tudo pago pelo nosso diretor, já totalmente apartado do calvário que enfrentara nas últimas semanas.

Passados uns dias, reunimos o grupo para fazer a avaliação dos eventos da pastoral durante a Semana Santa. O padre iniciou falando da nossa peça. Não era de censurar. Inquietou-se com o risco de acidente, no dia, mas ali, avaliando melhor, explorou a doutrina, adiantou apreensões dogmáticas que deixamos de lado, na apresentação. Salientou que o fervor da fé se traduz pela esperança. E que nós utilizamos nossa energia para explorar de forma extremamente violenta, a desesperança. Usamos um tempo imenso machucando, oprimindo, negando a vida na cena da crucificação e, segundinhos apenas valorizando a vida plena e justa, na cena da ressurreição. Na próxima tínhamos que rever nosso conceito de fé, aconselhou.

No domingo de Páscoa, este, peguei um carro de passeio. Bíblia em cima do painel num canto, livro de um doutrinador de outro. Rádio nas alturas. Mexia no celular todo tempo. O fiel condutor abusou da velocidade em um trajeto de pouco mais de 5km. Cortou outros carros, mudava de faixa constantemente, fez conversão irregular. Atrapalhou o trânsito, foi buzinado, buzinou e avançou um sinal na insalubre Augusto Montenegro. Lembrei do padre amigo: todos nós temos que rever nosso conceito de fé.

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