sábado, 2 de abril de 2022

crônica da semana - sonho e realidade, contra o gelo

 Sonho e realidade

Leitor das antigas, que me acompanha nesta jornada a bom marcar presença aqui na coluna, sabe que me impressiono com esses filmes de gelo. Se eu estiver ligado na tela e aparecer nevinha, aquela fumacinha saindo da boca, a paisagem de textura gris, não tem escapatória, cato logo um lençol de rede, um par de meias quentinhas, me embrulho dos pés à cabeça, e fico só com os olhos e o nariz de fora. Só suspirando.

E aconteceu de novo dias atrás, quando eu vi “Contra o gelo”, produção dinamarquesa que conta a história de um explorador do pólo norte. Toda a trama se passa no mais puro, desértico e insuportável frio do Ártico (e do meu cocuruto).

O que torna é que tirando a minha piração de ver o filme todo embrulhado em pleno calor belemense, calhou d’eu querer saber mais. Trata-se de uma história verdadeira e fascinante. Tem um atrativo científico, ambiental, esboça a compressão polar das estações do ano, tem aventura e é uma imersão neste organismo vivo da Terra que a gente aqui no Equador, nem malda como seja. A Calota de gelo do Ártico.

O enredo se dá a partir de uma expedição que tem como fim, provar que a Groelândia é uma porção única de continente e com esta evidência refutar a intenção dos Estados Unidos de tomarem posse da região ocidental (pra variar, os amigos americanos queriam dar umas picadas no gelinho dinamarquês).

Dois personagens ficam na pira, naquele ermo gelado por uma pá de tempo, sozinhos, quando não, na companhia de um amigo (e faminto) urso. É tido como filme de sobrevivência. Entretanto, contém ciência implícita. A contagem do tempo é regida pelo degelo de parte da calota, o que viabiliza a navegação (e é este o drama. No primeiro degelo, durante o resgate, eles não são encontrados no ponto combinado. Aí, é perrengue por mais um ano). Há também toda a contextualização geográfica, os instrumentos de localização, os dogmas cartográficos, que mesmo que uns não queiram, indicam a esfericidade do planeta. A Terra para (e por causa deles), não bate boca. É redonda mesmo. E como no cinema não se perde uma chance, há a fantasia e a filosofia. O compromisso, a amizade férrea.

Rolam lampejos fantásticos. O personagem principal sonha que os registros documentais da aventura correm perigo de se deteriorarem, resolve resgatá-los pondo em risco seu próprio resgate, e assim, crava um pensamento que beira à crença desmedida. O explorador Ejnar Mikkelsen convence o seu companheiro a mais uma insana jornada por causa do sonho que teve, sentenciando que “há verdade em todos os sonhos”. Não sei se foi um floreado cinematográfico, sei que no filme, os documentos que provariam a posse da Dinamarca, no escaninho de pedras em que foram abrigados, corriam perigo mesmo. O sonho, no caso, estava coberto da mais nevada verdade. E os registros foram salvos.

Salvos também foram os exploradores, depois de mais de dois anos no Ártico. E este é o espírito que reconheço no filme. A natureza aquecida do homem, inquieta, criativa, adaptativa, catadora de verdades. Era início do século 20. Minavam cientistas que decifravam, experimentavam mistérios.

Algumas opiniões tratam “Contra o gelo” como um filme de sobrevivência. Caso fosse, já teria cumprido a prosa porque, impressionado, me embrulhei dos pés à cabeça. Para mim, não é só isso. É história real e deslumbrante de como o ato de fazer ciência argumenta a vida. Mesmo na desesperança. Mesmo no ermo frio (que está no meu cocuruto) e que me faz mergulhar debaixo do lençol de rede e ficar com o nariz de fora, ó, só suspirando. 

 

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