sábado, 7 de maio de 2022

crônica da semana - surreal

 Surreal

É comum hoje a gente se deparar com situações de tal forma destrambelhadas que nos leva a classificar um caso este ou aquele de surreal. Daí fui buscar razão para tanto, na ossatura da palavra.

Antes, catei comparações. Revisitei o primário, quando a mim me foi apresentado o reino dos substantivos. Tinha o concreto e o abstrato. Este a gente entendia pouco, e era como um conceito vaporizado, atravessando a rua depressa, sem nos permitir gravar os modos no trajeto. Minha professora das primeiras compreensões, lá na Aparecida, me aproximava do saber. Então os termos concretos eram aqueles que a gente até entendia mais ou menos. O concreto permite medições, descrições. É tudo que preenche o espaço. (Uma bola, no meu mundo Raimundo, quando eu revirava os campinhos da Pedreira; o rádio de pilha amparado pela tramela da porta, tocando lambada, de manhãzinha; Meu Vulcabrás, minha cartilha Caminho Suave e a combatida, porém, jamais vencida tabuada. Ali, o estirão cheio de matinhos pequeninos beirando a Barão; além, minha sala de aula e a hora de merendar bem devagar. A atenção para terço de pedras cúbicas, um tambor de bater no terreiro. Meu sincretismo de roupa branca passadinha. Acolá, um mundo real, e o entendimento sobre o verdadeiro atravessar dos dias).

Já a reza e o fervoroso ponto cantado, a alegria de dominar a bola Dente de Leite, o medo de pedir pra sair de sala para verter água; e aquela afeição que eu sentia pela minha professora; aquele friozinho que eu disfarçava na barriga quando ela me chamava de “Pequenino” ou quando anunciava que minha tia já estava na porta para me levar pra casa, eram manifestações de um mundo abstrato. Procurava em cada canto medido nas três dimensões e não achava contornos ou descrição para meus sonhos de criança. Então eu vivia entre as tardes quentes e as concretas ruas de piçarra da Pedreira no caminho, sempre ansiado por mim, da escola; e as fartas ilusões sem hora para me acolher. A fantasia acontecia até mesmo entre as carteiras da Aparecida, onde cabiam dois alunos; se manifestava colorida, vasta, às vezes ondulada, disforme, sem fim no compartimento surreal da minha existência. E isso, o devaneio sem lógica, naquele tempo de molequinho, era tão bom! Era o que me fazia viajar no pensamento, a qualquer hora, e, em melhor momento, no quentinho do fundo da minha rede, bem na biqueira do sono.

Hoje é que, com essa presepada vil, com este fraseado alienado de zap, a partir de roteiros de ódio e preconceitos, é que as manifestações surreais são tidas e havidas como de toda sorte ruins e malfazejas. Peças nojentas e indesejáveis companhias. Eu, foi não foi exclamo: “gente do céu, isso é surreal!”. Surreal do mal. Não mais o reino dos substantivos indicando a direção dos tempos, como lá atrás, no caminho da escola. Agora é maio plúmbeo. Dá-se neste rodopio de consciências, que a compreensão se embanana toda. É inacreditável! Revolução é opressão. Amor é ódio. O som do tambor cega. O matiz auriverde ensurdece. Mentira é mundiação que vinga daqui pra’li arrebanhando indigentes. Parece rolo de filme emendado na durex. Pintura em movimento errante, versos frios. Futuro é medo. Pleno maio. Éraste!

A palavra é grotesca. O pensamento é lâmina afiada. Qualquer bondade é tiro seco e certo. O rio avua que nem avião. E chove a vida toda dentro da gente e alaga tudo quanto é vaso oco do coração. A gente quer suspirar e tosse. Quer dormir e despenca igarapé abaixo. De olhos arregalados. Num tibum de pavor surreal.

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