Surreal
É
comum hoje a gente se deparar com situações de tal forma destrambelhadas que nos
leva a classificar um caso este ou aquele de surreal. Daí fui buscar razão para
tanto, na ossatura da palavra.
Antes,
catei comparações. Revisitei o primário, quando a mim me foi apresentado o
reino dos substantivos. Tinha o concreto e o abstrato. Este a gente entendia
pouco, e era como um conceito vaporizado, atravessando a rua depressa, sem nos
permitir gravar os modos no trajeto. Minha professora das primeiras
compreensões, lá na Aparecida, me aproximava do saber. Então os termos
concretos eram aqueles que a gente até entendia mais ou menos. O concreto
permite medições, descrições. É tudo que preenche o espaço. (Uma bola, no meu
mundo Raimundo, quando eu revirava os campinhos da Pedreira; o rádio de pilha
amparado pela tramela da porta, tocando lambada, de manhãzinha; Meu Vulcabrás,
minha cartilha Caminho Suave e a combatida, porém, jamais vencida tabuada. Ali,
o estirão cheio de matinhos pequeninos beirando a Barão; além, minha sala de
aula e a hora de merendar bem devagar. A atenção para terço de pedras cúbicas,
um tambor de bater no terreiro. Meu sincretismo de roupa branca passadinha. Acolá,
um mundo real, e o entendimento sobre o verdadeiro atravessar dos dias).
Já
a reza e o fervoroso ponto cantado, a alegria de dominar a bola Dente de Leite,
o medo de pedir pra sair de sala para verter água; e aquela afeição que eu
sentia pela minha professora; aquele friozinho que eu disfarçava na barriga
quando ela me chamava de “Pequenino” ou quando anunciava que minha tia já
estava na porta para me levar pra casa, eram manifestações de um mundo
abstrato. Procurava em cada canto medido nas três dimensões e não achava contornos
ou descrição para meus sonhos de criança. Então eu vivia entre as tardes
quentes e as concretas ruas de piçarra da Pedreira no caminho, sempre ansiado
por mim, da escola; e as fartas ilusões sem hora para me acolher. A fantasia acontecia
até mesmo entre as carteiras da Aparecida, onde cabiam dois alunos; se
manifestava colorida, vasta, às vezes ondulada, disforme, sem fim no compartimento
surreal da minha existência. E isso, o devaneio sem lógica, naquele tempo de
molequinho, era tão bom! Era o que me fazia viajar no pensamento, a qualquer
hora, e, em melhor momento, no quentinho do fundo da minha rede, bem na
biqueira do sono.
Hoje
é que, com essa presepada vil, com este fraseado alienado de zap, a partir de
roteiros de ódio e preconceitos, é que as manifestações surreais são tidas e
havidas como de toda sorte ruins e malfazejas. Peças nojentas e indesejáveis
companhias. Eu, foi não foi exclamo: “gente do céu, isso é surreal!”. Surreal
do mal. Não mais o reino dos substantivos indicando a direção dos tempos, como
lá atrás, no caminho da escola. Agora é maio plúmbeo. Dá-se neste rodopio de
consciências, que a compreensão se embanana toda. É inacreditável! Revolução é
opressão. Amor é ódio. O som do tambor cega. O matiz auriverde ensurdece.
Mentira é mundiação que vinga daqui pra’li arrebanhando indigentes. Parece rolo
de filme emendado na durex. Pintura em movimento errante, versos frios. Futuro
é medo. Pleno maio. Éraste!
A
palavra é grotesca. O pensamento é lâmina afiada. Qualquer bondade é tiro seco
e certo. O rio avua que nem avião. E chove a vida toda dentro da gente e alaga
tudo quanto é vaso oco do coração. A gente quer suspirar e tosse. Quer dormir e
despenca igarapé abaixo. De olhos arregalados. Num tibum de pavor surreal.
Uma delícia o teu texto! E que ponto final. Amei 💕
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