Os baixões do Conde
Neste
instante em que o leitor folheia, passa os olhos procurando os títulos, as
manchetes, a programação da semana, a página do Ismaelino, um alento no
horóscopo... aqui no caderno de cultura do jornal, eu me encontro cá do outro
lado da Ilha das Onças, num pé e noutro de ansiedade para me tornar imortal. E,
me enfurnando de cabeça na modéstia, até digo, arremedando os pequenos da beira,
que nem sou merecendente de uma cadeira na Academia Barcarenense de Letras.
Eis
que rapidola, dou um guiza na desmerecência e reconsidero agradecido. Classifico
a lisonja como uma homenagem ao meu fazer literário e também à minha vivência e
às ricas experiências que tive nos 15 anos que morei na cidade. Um
reconhecimento pelos anos a bom tecer causos, criar versos, arquitetar tramas e
tratos, inspirado e motivado por nossa gente.
Ao
povo de Barcarena, meu carinho... E a minha reflexão antes da cerimônia de logo
mais.
Repasso
e reviro o tempo. Procuro o fio condutor, o alinhavo objetivo que modela minha
relação com a cidade. Não é fácil. São tantas as razões, as emoções, decisões e
encantos. Mas cato do Conde, um momento decisivo, a marca que não desaprega, a
voz que se repete no meu cocuruto. Foi numa comunidade que faz contato com um
grande muro erguido por um empreendimento industrial, na área. O líder do grupo
me levou para conhecer um pouco do trabalho que ali se realizava. Tarefas cultivadas,
terreiros para criação de animais, a vila dos moradores e ao fundo, anunciou o
maior baque que a comunidade sofreu. Entramos num baixão, com pequenas cavas
bem marcadas. Eram os tanques, disse ele, dos peixes criados em cativeiro.
Havia a esperança naquele ano de grande produção. Aconteceu, porém, o
indesejado. Banzeiro, maré de lançante, aquela de lua nova em março. A água
grande invadiu o igapó, destruiu as contenções, interligou canais antes
apartados e na vazante levou tudo quanto foi peixe. Perderam tudo para a maré
de equinócio. Não era homem de se abater. Considerou o prejuízo, e ao mesmo
tempo partiu para uma alternativa. Ainda tinha a parte alta do terreno para
plantar. O certo é que ficaria um tempo sem recurso, sem ter como manter a
família. Era o momento de buscar ombros amigos.
Antes
de findar nossa caminhada, retornamos ao muro. Breve silêncio. A seguir, ele
declarou, com a mais doce sinceridade, que seria diferente se ele estivesse do
outro lado. Lá estava a estabilidade. O salário todo mês, a cartela de tíquete,
o crachá de batalhador que avalizava a meia passagem no ônibus que fazia linha
pra Abaeté, a indiferença diante do banzeiro e da maré grande. Silenciou de
novo. Não falamos mais nada, até nos despedirmos.
Aquele
encontro selou meu compromisso com Barcarena. Dali e por muito tempo adiante, parte
da minha energia eu dedicaria às lutas por inclusão, por trabalho, por
educação. Minha escrita teria pé no chão. A palavra me serviria como o mais
esperançoso meio de transformação (e a luta continua quando às vésperas de ser
empossado, me ocorre a declaração atribuída ao núcleo de comando de Hitler, orientando que ao se ouvir a palavra cultura,
se busque logo uma arma). Destarte que, para transformar, temos que ser imortais
mesmo. Ser imorrível é o plano B.
Reviro
o tempo: os caminhos que me levam hoje a uma cadeira na Academia de Letras de
Barcarena, que me possibilitaram ostentar sobre os ombros a leve elegância
erudita do pelerine; os passos que me deram alcançar a imortalidade em solo
cabano, se iniciaram, também, nos baixões renováveis do Conde.
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