A lapiseira, o cepo e o cabo da pá
Eu dizia que aquele era quase um equipamento de
tortura medieval.
Utilizávamos a geringonça para pesquisar Cassiterita
em Rondônia. Constava de uma sequência de tubos que eram empurrados terra adentro,
sob a percussão de um cepo de madeira dura, com peso próximo de 100 quilos. Era
manejado por quatro homens sobre uma plataforma. No procedimento, a equipe
erguia o cepo, volteado por uma cinta de corda compartimentada, o que derivava
uns 25 quilos pra cada braço, a uma altura que gerasse energia potencial, mais
choque e mais o escambau de brutalidade, determinação e dor, e depois o largava
velozmente sobre o extremo da composição de tubos. Assim, debaixo de muita
cepada, o conjunto era introduzido no solo. Era um sistema manual. Tocado a
feijão, como dizíamos. Bruto. Não era pra qualquer peão não.
Data dos primeiros dias da minha caminhada por
Rondônia, a fértil ligação que criei com aquela equipe. E fizemos porque
fizemos para ficarmos juntos. No meu último dia de trabalho, por lá,
descontando uma ou outra baixa, a galera era a mesma. Foram quatro anos sem se
desapregar.
Meu equipamento de trabalho, naqueles anos, foi
sempre a lapiseira. Assumia as tarefas técnicas, logísticas, cuidava do rancho
e do uso moderado da birita nos acampamentos (item que quando saía do controle
era o único motivo para ficarmos bicudos, uns com os outros). Eles, porém, não
estavam nem seu souza para a minha lapiseira. Sem comando ou menção nenhuma, me
sinalizavam que se eu quisesse ser um líder, chefe de equipe, administrador de
alguma campanha, deveria discernir o ir e o vir da atividade. Então, subi na
plataforma, certa vez e me danei a socar o cepo. Assumi meus 25 quilos na corda
e mandei ver. Normalmente, em terreno bom eram necessários uns dez golpes
seqüentes sobre o tubo do topo, numa tirada só, sem intervalo, para resultar
numa boa penetração. No terceiro golpe eu já estava na baba, no
pira-paz-não-quero-mais. O suor frio escorreu, a vista turvou e a cabeça rodou.
Desci da plataforma na biqueira de uma desfalecência. Arriei sobre um estrado
que a gente montava para abrigar as amostras e fiquei ali tentando tornar. Rogério,
que era bateador da equipe (para mim, o maior, o mais clássico, o mais elegante
bateador do universo conhecido), foi ver como eu estava. Cigarro porronca
apagado no canto da boca, mãos tuiradas de deslamar a amostra, olhos miúdos
como se estivesse sempre rindo um riso curto, agachou-se, espalmou a mão sobre
a minha testa, verificou o normal da temperatura. Tranqüilizou a galera e antes
de voltar para a tarefa, resumiu o ocorrido com uma frase definitiva: “se tu
não tivesse estudado um pouquinho, tavas no blefo”. Afastou-se. Depois de um instante
retornou e colocou a lapiseira no bolso da minha camisa. Havia caído lá de cima
enquanto eu socava o cepo.
Aquela gente humilde, dedicada e de um
companheirismo inocente me mostrou que todo trabalho, por penoso que seja, pode
ser dominado se a gente derivar os 100 quilos de brutalidade e dor. À minha
equipe de Rondônia guardada com carinho na memória desses 38 anos, a homenagem
hoje, pelo Dia do Trabalhador.
Rogério tinha razão. Muitos anos depois, tragado
pelas ondas da reestruturação produtiva, me vi numa agonia só, pegado no cabo
de uma pá, nas madrugadas fabris de Barcarena. E de novo, cara branca, suor
frio, desanuviamento, à beira do blefo... definitivamente, a lapiseira havia
tombado para trás.
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