Lata de ervilha
Ano passado, logo no início desses intermináveis
dias de aperreios, ainda sem ter muita idéia de como lidar com a situação,
passamos batido no abastecimento de casa. Isolados, sem poder ir ao
supermercado ou à feira, os atendimentos delivery ainda em experimentação, a
despensa zerou. Ficamos no mínimo. Calhou exatamente, nessa fase, de um senhor
bater lá no portão, pedindo uma qualquer coisa que o ajudasse prover o de comer
da família. Fiz um levantamento do que poderíamos oferecer. Contada bem
contadinha a provisão imediata, nada tínhamos de excedente, a não ser uma lata
de ervilha. E Mesmo me perguntando o que o bom homem faria com uma lata de
ervilha, mesmo entendendo que aquela oferta não iria aplacar a fome de ninguém,
frustrado, tomei da lata e retornei com a oferta ao portão. Ele agradeceu,
juntou a lata com outras poucas coisas num saco e se adiantou para outro pedido,
na vizinha.
Tão logo nos adaptamos aos novos modos de aviamento,
fizemos uma combina aqui em casa de sempre pedir nas compras um excedente, uma
coisinha a mais (ervilha, ora, nada contra...) para as ocasiões de batidas no
portão, no coração e na consciência.
Um ano depois, vemos cair aos montes, ao largo e ao
nosso lado mesmo, pessoas antes ativas e produtivas, sem a expectativa de
sequer uma refeição ao raiar do dia.
Para
muita gente a situação está desesperadora. O governo abandonou a parcela mais
pobre da sociedade. Quem tinha o auxílio emergencial, vive agora de quê?
Vacina, com este desmando federal, sabe-se lá quando. A vida normal não tem
perspectiva de se restabelecer.
Então, a
regra aqui em casa se asseverou. A pauta é coletar qualquer fagulhazinha,
qualquer trisca que sobre de recurso, ou mesmo alterar o orçamento mensal e
transformar o apurado em ‘de comer’ para quem precisa. Optamos também por
abdicar de alguns prazeres, a cervejinha do sábado, uma ou outra tentação, e
desviar o que der para aquelas pessoas que não têm um remédio, um feijão, um
gás... Estamos numa guerra. As baixas são grandes e em todos os sentidos.
Entendo que, quem puder fazer qualquer coisa para amparar o companheiro, a
companheira, é esta a hora.
Quem tem
um provento garantido, uma renda fixa, é esta a hora. Depois, quando passar, a
gente volta a fazer aquelas presenças usuais. Sei que temos outras demandas,
mas a vez agora é das pessoas em condições mínimas. Gente sem renda, sem eira
nem beira. Essas estão na lista de prioridades.
É isso!
Estamos
em pedaços, vamos nos juntar.
A
experiência que tenho vivido nos últimos meses é de um solavanco nos rumos da
consciência. Hoje em dia, cada tostão aqui em casa ganha destino pelas regras
do que é possível partilhar.
Sei que
muitos são ressabiados. Temem ser enganados, tragados pelos golpistas. Podemos,
então, olhar para os mais próximos, parentes, amigos, aqueles que sabemos e
conhecemos a realidade. Se entre estes, a demanda não existe, podemos buscar as
organizações populares. Aqui na igreja de Aparecida, sei que a Cáritas tem um
cadastro de pessoas que são assistidas com cestas básicas. No Jurunas, a comunidade
da passagem Limoeiro desenvolve uma agenda com distribuição de sopa. Tenho acompanhado
um movimento de grupos organizados que montam barracas (autônomas!) na rua com
mantimentos. Aqueles que precisam retiram os produtos de necessidade, outros
que passam e não precisam, repõem o estoque, fantástico isso! Oportunidade de
colaborar não falta.
Estamos
em pedaços, vamos nos juntar.
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