O copo com uma colher dentro
Arremeda ser registro da esperteza de um
engraçadinho que passou, jogou as coisas na pia e se picou para momentos de
preguicinha sem remorsos. Né não.
A composição do copo com uma colher dentro é uma
montagem que favorece o entendimento sobre um fenômeno físico de difícil
apreensão, no entanto, indispensável para a harmonia do nosso mundo: a
refração. Trata-se do desvio que a luz sofre, quando muda de meio físico. A
experiência clássica é esta uma: o copo de vidro com uma quantidade xis de água
e uma colher mergulhada nele. Quando a gente olha através do copo, parece que a
colher tem uma quebra, quando está dentro da água. A ilusão de ótica se dá por
causa do desvio que a luz sofre ao passar de um meio (o ar) para outro (a
água).
Guardei essa lição aprendida com o melhor professor
de Física que conheci: o excepcional professor Campbel, com quem estudei na
Escola Técnica e que além de me estimular na percepção dos fenômenos, como o
que ocorre no copo com uma colher dentro, também cravou em mim a estratégia de
nunca resolver ou substituir as letras de uma equação, sem antes arrumar a
fórmula todinha e isolar a incógnita no primeiro termo, só depois, e de lá, até
hoje, só depois é que inicio o sofrimento com as contas.
Cismo que não há um único brasileiro que não tenha
sofrido refração nesses tempos, de tudo quanto é jeito, assombrosos.
O fenômeno, a gente percebe no campo físico. O
espaço partilhado entre as pessoas não mais é tratado como dantes. Cada palmo
de chão é monitorado, contado nas medidas da segurança e da vigilância com a
saúde. Equações são montadas a partir de incógnitas de convivência. Mesmo
assim, quando a gente substitui as nossas ações, todas elas, por números, chegamos
a resultados estarrecedores. Estamos beirando as 5 mil mortes por dia. Daqui a
pouco o Brasil vai registrar a assustadora marca de 500 mil óbitos por Covid. E
nenhuma resultante prática para conter o extermínio se vê. Mobilização
nacional, não tem. Condução unificada de propostas, não há. Uma vilania
política sem tamanho caçoa da tragédia. Não nos é dada alternativa alguma no
presente. E o futuro se mostra nebuloso, sombrio. O que poderia nos salvar era
a vacina. Mas todo dia a promessa de vacinação se esvai pelo ralo. Esta semana
parou tudo. Faltou vacina. Os números da imunização no Brasil indicam que foi
distribuída uma quantidade de vacinas muito aquém do que estava prometida pelo
Ministério da saúde. Sem vacina, sem amanhã.
As quebras, os desvios, além de se manifestarem no
campo físico, também se estendem para a esfera emocional, comportamental. Tirando
por mim, tenho oscilado do io ao chio em sentimentos, em sensações, gestos e atitudes.
Solidão, apreensão, indignação e medo são companhias diárias, alternadas, às
vezes. Noutras, no pacote completo. Destruindo, destroçando minha alma.
Acredito que esta instabilidade, este sofrimento tórrido, seja brasa que arde e
queima dentro de muita gente. Acompanho pelas redes sociais, pelo noticiário, o
telefone toca e a notícia dói. Já tentei várias
estratégias para equilibrar o animus. Por último, voltei a madrugar. Refletir
ao alvorecer, contemplar o raiar do sol, ouvir o cantar dos primeiros pássaros
e o acordar longe da minha Pedreira querida.
Há, porém, um fenômeno acontecendo no horizonte todos
os dias. A colher está mergulhada dentro do copo com água. E não é uma ilusão
de ótica. Ela está quebrada mesmo.
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