sábado, 17 de abril de 2021

crônica da semana - tua cantiga

 Tua cantiga

Logo que nasci, almocei meu umbigo com bastante farinha. Cuidei, porém, de guardar uma boa parte para que eu pudesse comer um isso de pedacinho a cada ano, pelo resto de minha vida. E assim tem sido.

Com o passar do tempo, dei com os rumos da arte. Virei um alguém construído por experimentos, sensações, realidades criadas. A pátria (amada), a prática (indolor), a pútrida (realidade), a pata (traiçoeira no lombo). Tudo junto me moldando.

Daí que, um certo dia, desses de descontroles racionais, de transbordos de intolerância, uma amiga reduziu o poema que compõe a canção “Tua cantiga” de Chico Buarque a uma narrativa sobre o comportamento desnaturado de um pai de família. Julgou os versos, condenou o enredo, crucificou na madeira fria e farpada do preconceito, o autor.

E eu que me mordo morno e caolho, em noites sem lua procuro mistérios. Vi emergir, aqui pertinho, do leito lodoso do canal da Pirajá, girassóis falantes, zumbis insones, um raiar do sol opaco na baixa madrugada. Em outras eternidades, explodiram correntes de águas púrpuras. Ultrapassaram a amurada do canal e derramaram culpas, sucuris beges, beldades sem rostos, espinhos sorridentes e entidades sagradas pelas ruas do entorno, até bem perto do horizonte que se exibe desdentado debaixo das luminárias de Pedro Miranda Mor dos Anzóis Pereira.

Ninguém num sabe. Ninguém num viu. Mas eu, sim... Eu tenho certeza. Do canal da Pirajá, emergem mistérios. E cantos roucos e sapos moucos e riscos poucos. Chororô na alta madrugada. Ninguém não sabe, ninguém não viu, nem esperança, nem amanhã. Nenhum tempo me pariu. Nonada.

Acontece que meu amigo, a partir daquela interpretação que fez da música de Chico Buarque, saiu espalhando por aí pelo zap que o artista era um demônio que, com suas canções, incentivava a destruição de lares.

A minha cuíra é entender como as pessoas percebem e como elas crivam as manifestações artísticas a partir de concepções tosquiadas que têm sobre a livre criação. Esta cisma começou a me inquietar, a mexer com minhas simbologias e minhas significâncias; com meus valores estéticos, meus recônditos teores, minhas faces expostas, meus íntimos pendores.

E me embrulhei na solidão de meus olhos. Sumi silencioso por entre espantos e tristezas. Descolori pensamentos, deli pretensões, subjuguei sonhos. Desapareci no encaixe compulsório de minhas pálpebras para não ver mais nada (ninguém num sabe, ninguém num viu...). O vazio me parece mais seguro. Menos tonto. Inofensivo. Minha amigo não me encontrará jamais no ermo gris expandido, quase infinito. Meu amiga não me atacará com opiniões apócrifas, não me atingirá com débeis deduções, as setas da rasa compreensão, de mim, serão desviadas. A dor em meu corpo será uma nota leve, memória fluida, e se tornará bolinha de cera impura, rolará ladeira abaixo, para as profundezas sulfúricas e lá, juntar-se-á aos seus (eles, satanazes autênticos de chifrinhos, tridentes na mão, narizes fumegantes, olhos braseados e em tudo por tudo, maus. Muito maus).

Eu só estou é essas pessoas que moldam a arte, ao seu próprio contorno, sendo que a arte não se molda e não se reconhece em limites, beiradas. A arte é mergulho abissal. É caminho longe, etéreo.

Eu só estou é essas pessoas que não se permitem o milagre da transubstanciação. Para minha amigx, sou o tipo de gente que, daqui até o fim da existência, todo ano, vai comer um pedacinho do próprio umbigo com farinha.

 

 

 

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