Tua cantiga
Logo que nasci, almocei meu umbigo com bastante
farinha. Cuidei, porém, de guardar uma boa parte para que eu pudesse comer um
isso de pedacinho a cada ano, pelo resto de minha vida. E assim tem sido.
Com o passar do tempo, dei com os rumos da arte.
Virei um alguém construído por experimentos, sensações, realidades criadas. A
pátria (amada), a prática (indolor), a pútrida (realidade), a pata (traiçoeira
no lombo). Tudo junto me moldando.
Daí que, um certo dia, desses de descontroles
racionais, de transbordos de intolerância, uma amiga reduziu o poema que compõe
a canção “Tua cantiga” de Chico Buarque a uma narrativa sobre o comportamento
desnaturado de um pai de família. Julgou os versos, condenou o enredo,
crucificou na madeira fria e farpada do preconceito, o autor.
E eu que me mordo morno e caolho, em noites sem lua
procuro mistérios. Vi emergir, aqui pertinho, do leito lodoso do canal da
Pirajá, girassóis falantes, zumbis insones, um raiar do sol opaco na baixa
madrugada. Em outras eternidades, explodiram correntes de águas púrpuras. Ultrapassaram
a amurada do canal e derramaram culpas, sucuris beges, beldades sem rostos,
espinhos sorridentes e entidades sagradas pelas ruas do entorno, até bem perto
do horizonte que se exibe desdentado debaixo das luminárias de Pedro Miranda
Mor dos Anzóis Pereira.
Ninguém num sabe. Ninguém num viu. Mas eu, sim... Eu
tenho certeza. Do canal da Pirajá, emergem mistérios. E cantos roucos e sapos
moucos e riscos poucos. Chororô na alta madrugada. Ninguém não sabe, ninguém
não viu, nem esperança, nem amanhã. Nenhum tempo me pariu. Nonada.
Acontece que meu amigo, a partir daquela
interpretação que fez da música de Chico Buarque, saiu espalhando por aí pelo
zap que o artista era um demônio que, com suas canções, incentivava a
destruição de lares.
A minha cuíra é entender como as pessoas percebem e
como elas crivam as manifestações artísticas a partir de concepções tosquiadas
que têm sobre a livre criação. Esta cisma começou a me inquietar, a mexer com
minhas simbologias e minhas significâncias; com meus valores estéticos, meus
recônditos teores, minhas faces expostas, meus íntimos pendores.
E me embrulhei na solidão de meus olhos. Sumi
silencioso por entre espantos e tristezas. Descolori pensamentos, deli
pretensões, subjuguei sonhos. Desapareci no encaixe compulsório de minhas
pálpebras para não ver mais nada (ninguém num sabe, ninguém num viu...). O
vazio me parece mais seguro. Menos tonto. Inofensivo. Minha amigo não me
encontrará jamais no ermo gris expandido, quase infinito. Meu amiga não me
atacará com opiniões apócrifas, não me atingirá com débeis deduções, as setas
da rasa compreensão, de mim, serão desviadas. A dor em meu corpo será uma nota
leve, memória fluida, e se tornará bolinha de cera impura, rolará ladeira
abaixo, para as profundezas sulfúricas e lá, juntar-se-á aos seus (eles, satanazes
autênticos de chifrinhos, tridentes na mão, narizes fumegantes, olhos braseados
e em tudo por tudo, maus. Muito maus).
Eu só estou é essas pessoas que moldam a arte, ao
seu próprio contorno, sendo que a arte não se molda e não se reconhece em limites,
beiradas. A arte é mergulho abissal. É caminho longe, etéreo.
Eu só estou é essas pessoas que não se permitem o
milagre da transubstanciação. Para minha amigx, sou o tipo de
gente que, daqui até o fim da existência, todo ano, vai comer um pedacinho do
próprio umbigo com farinha.
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