Rico da graça de Deus (e de livros)
O maior patrimônio que acumulei na vida é composto
de livros. Não é nada, não é nada, somei alguns milhares de dinheiros movimentados
nas mais variadas moedas que circularam no Brasil desde que ganhei meu primeiro
tostão em troca da minha força de trabalho.
Antes, minha mãe, no aperreio das cobranças e sem
muita paciência para nos explicar o estado e as coisas, reconhecia o fato justo
e certo de sermos pobres de teres e haveres, mas como conforto dizia que éramos
ricos da graça de Deus.
Mais além eu acrescentaria: e de livros.
Com o primeiro emprego, deu-se sutil alívio nos
perrengues e a chance de conquistar os mundos literários se concretizou. O
primeiro salário que a vida de Técnico em Mineração me deu, ensejou minha associação
ao Clube do Livro. Só desse jeito, com esse modelo editorial é que os livros
chegavam a Rondônia.
Explico: hoje, com esta onda de negação preocupante,
ler voltou a ser uma lida subversiva. Há quase quarenta anos, no olho do
furacão de um regime de força ainda bafejando pressões e perseguições, não era
fácil também. Poucas livrarias havia, com destaque negativo aqui para este lado
do Brasil. Rondônia padecia de ofertas. Quando cheguei à sede da mineração,
alguns amigos já tinham as manhas para a compra através do Circulo do Livro.
Para entrar, tinha que ser indicado. Ajeitei as formalidades e assim que me
tornei sócio e recebi o primeiro catálogo, iniciei a minha fortuna.
Entre escolher o livro no catálogo, fazer o pedido,
postar no correio, e depois receber a encomenda mediante pagamento no balcão da
agência, era um custo de aproximadamente 40 dias. Valia a pena, é certo. O
Círculo do Livro tinha a característica da qualidade. As edições eram bem impressas,
capa dura e de arte admirável, textos com tipos de bom tamanho e espaçamento
confortável. Exibem-se aqui na prateleira da minha estante alguns exemplares
memoráveis dessa lavra. “Estrela da manhã e outros poemas” de Manuel bandeira,
com uma apresentação singela se impõe pela grandeza. A capa de “Mephisto” do
alemão Klaus Mann sempre me causa impacto. Boas encadernações e o acabamento do
Círculo me fizeram chegar em bom estado, até os dias de hoje, um encarreirado
de títulos do meu ídolo Luís Fernando Veríssimo. O Círculo foi a fonte de
suprimento para as minhas leituras por um bom tempo. Até que a Livraria da Rose
chegou em Porto Velho e trouxe na bagagem o Asterix.
A Rose tomou o lugar do Círculo do Livro com
méritos. Títulos diversos não faltavam na livraria dela. O livro que me
destrambelhou o tino, esmigalhou meus preconceitos literários e abriu o meu ser
para o ato libertário de criar histórias, comprei na da Rose. O inebriante
“Zero”, naquela edição que desafiava os verdugos da arte, é minha preciosa, e
reincidente, leitura de cabeceira.
Todo mês, fazia o investimento. Arrematava ativos que
contavam também, depois da Rose, com o quadrinho dos cartunistas paulistanos. Revista
Circo, Chiclete com Banana, Geraldão, Níquel Náusea, tudo junto às edições
atrevidas d’O Planeta Diário e os últimos suspiros da revista Mad.
Os tempos são outros e tão iguais. A umidade, o
cupim, a traça, lógicas argumentativas da rinite, da sinusite, me sugerem agora
uma dolorosa atitude. É com o coração partido que revelo: meu patrimônio
formado por livros vai continuar comigo. Mas da minha fortuna de revistas em
quadrinhos, infelizmente, vou ter que me desfazer. Tomara que encontre donos
zelosos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário