sábado, 15 de maio de 2021

crônica da semana - o mundo horizontal

 O mundo horizontal

A imagem desenhada, explicada e encantada da História da humanidade ainda me atrai. Visualizei, senti o poder do traçado em alguma narrativa literária que chegou a minhas mãos nos últimos anos. Texto com contornos científicos, balanceado por pitadas românticas. Marcelo Gleiser, Carl Sagan, uma ou outra biografia de gênios famosos. Foi numa dessas publicações que tive a revelação.

A intenção do autor era traduzir as maravilhas que se multiplicaram na cabeça do Homem primitivo, quando deixou de andar sobre quatro patas, ergueu-se e contemplou o céu estrelado. Trata-se de uma elaboração estilística fascinante para um evento da Evolução. E de uma poética, de uma leveza... tem também permeios de racionalidade. Ligar o nascimento do Homem moderno com a imensidão do Cosmo é arte que me emociona.

A interpretação desta alegoria se baseia no fato de que uma postura sobre quatro patas, aquela que impõe a horizontalidade da coluna vertebral (e do mundo), restringe o campo de visão do ser que vive sobre a Terra. Há um limite para a percepção, para o entendimento. A altura máxima dos sonhos e pretensões é rés-o-chão.

Na imagem construída do Homem moderno, este limite se esvai. Some no infinito. Quando o Homem fica de pé, fica mais perto do céu, de Deus, das estrelas, do inesgotável universo. Aproxima-se de todas as possibilidades, de todas as tecnologias e construções. Torna-se íntimo dos segredos da criação, dos caminhos que levam ao amor. E ao ódio.

Alvoreceres além, cá estou, com uma dor miseravida mulestadeinsuportávelnojentaordinária na coluna, refletindo sobre a validação de estar de pé.

Entre um analgésico e outro, choro lágrimas profusas neste maio de tantas e fortes emoções. Nem todas pela dor física, boa parte, por este mundo de dores que brotam das profundezas do coração.

O mês de maio, de conflituosos sentimentos, ajuda no banzo.

Um ano e pouco além do início do flagelo que é esta pandemia provocada pelo Coronavirus, e potencializada pelo desastre que se queixa ser um governo brasileiro, o sofrimento é o mesmo de quando recebi a notícia da passagem do meu companheiro Cláudio Cardoso. Um exemplar grandioso do Homem moderno, pensante, criador amável e que amava a Terra, as pessoas, a vida. Dominou o quanto pôde os reveses, a ousadia de estar de pé. Até que o vírus o pegou à traição. Só assim, por uma manobra sorrateira, desleal deste sistema perverso é que Cláudio abandonaria o front. De outra forma, ainda estaria aqui cerrando fileiras contra essas desditas com as quais nos batemos todo santo dia. Armado de poemas.

As contendas do mês se revigoram e as lágrimas vêm em enxurrada, quando localizo o dia 15 de maio de 23 anos atrás. A data marca o dia de intraduzível sofrimento, em que minha mãe nos deixou. Um momento de esmigalhar o coração: um dia após o meu aniversário e às margens dos festejos do Dia das Mães. Aquele 15 de maio foi um ataque cruel e malicioso do destino. Não nos ofereceu defesa. Mesmo de pé, vislumbrando o infinito, ante àquela situação devastadora, me senti limitado. Com a fé e o entendimento sobre a vida, rentes ao horizonte. Sem éter, sem imensidão. Sem futuro.

De pé, cá estou eu, com 58 anos completados ontem. No futuro. Neste dito futuro bagunçado de sentido, de teres e fazeres. Vendo meu Brasil se enterrar dentro de um buraco profundo e escuro. Estou eu, cá, Homem moderno, chorando meus mortos, e percebendo o cultivo do ódio nos levar de volta às quatro patas.

 

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