sábado, 22 de maio de 2021

crônica da semana- outra da cobrinha

 Outra da Cobrinha

Eu ainda chamo de cobrinha para fila

É um termo antigo que identifica a forma vexada que nos submetemos para alcançar todo e qualquer fim, e de lá a cá, elabora, também, um momento na vida da gente em que nossos íntimos estiolados afloram, o instinto selvagem que se abriga nas margens da alma se anima, nossas vagas morais e éticas se adensam. A cobrinha é terra de repentes, de ações e reações jamais pensadas. É a queda do discurso e da razão. É um grau para a barbárie... ou, em raríssimas ocasiões, não.

E é neste contexto da análise do comportamento que ela a cobrinha nos visita hoje, quando interpreta nossos jeitos e modos, direitinho neste momento atual, que se destaca por decisões diárias de cancelamentos, bloqueios, mal-a-morte-e-se-tiver-vegonha-na-cara-não-fala-mais-comigo...

Eu ainda chamo de cobrinha para as filas. É um costume da antiga, mas é bem empregado. Expressa bem o caráter rasteiro desta prática de alinhar-se na pesarosa arte de esperar. Mas ao mesmo tempo em que elas, as cobrinhas são monótonas, chatas, podem ser turbulentas, convulsivas. Deixa aparecer um furão, pra ver como a coisa ferve.

Ou não.

A maior fila que eu já encarei na minha vida foi a de inscrição para um evento da SBPC, em 2007. Era o último dia e a cobrinha tava assim, ó, dando voltas e voltas em torno do prédio da reitoria. Cheguei pelas dez da manhã, e como já tinha feito uma prévia da inscrição pela internet, achei que fosse ficar ali uns instantes só. Que nada. O sistema deve ter falhado, naquele dia. Quem fez a inscrição prévia, quem não fez, acabou ficando no mesmo bolo. E terminei saindo, com uma das últimas vagas ofertadas para mini-cursos, lá pelas três da tarde.

A verdade é que eu fiquei ali por horas, porque eu quis. Quis ficar, não. Sei lá, quis provar alguma coisa.

Como a inscrição era no campus da UFPA e dirigida à comunidade acadêmica, a presença ali era, na totalidade de estudantes, e a maioria, da própria Federal. Todo mundo se conhecia, ou, por outra, se enxergava. Resultado: a pessoa chegava no rabo da bicha, dava uma esticada no pescoço lá pra frente, reconhecia um fulano, uma sicrana e dali partia para uma posição mais adiante (do jeito que acontece na fila do RU). E eis que assim ocorreu com muita gente. Todo mundo furou na maior. Houve momentos que, do canto em que eu estava, fiquei quase uma hora sem arredar um tiquinho para frente, tantos que foram os espertinhos a adiantar-se sobre mim. Naquela fila, exatamente, não rolou nenhum barraco. Tinha aquela coisa dos ‘conhecidos’, da camaradagem e o fura aconteceu no maior fair play.

Eu não me abalei, fiquei por ali, contando passo e acabei aderindo a um grupinho bacana, auto-intitulado dos puritanos, aqueles que ‘mesmo em face do maior encanto’ iriam resistir renitentes sem dar um salto oportunista para frente sob os favores de um amigo (alguns, a contragosto, dizque, fraquejavam, sucumbiam a um aceno persuasivo e nos largavam para trás. Depois, já inscritos, com um ar de falsa solidariedade, passavam por nós, pouquistas, exibindo a bolsa que estava sendo distribuída para o evento). E por causa desta lerdeza, pastamos, eu e meu grupinho de incautos, por longuíssimas cinco horas.

Não lembro muito bem, mas, em defesa de uma ética falida, como previne a piada sobre os convictos otários, é provável admitir que, além de conscientemente estacionados entre os fonas, estivéssemos ‘discostas’ a apreciar o movimento da beira.

 

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