sábado, 16 de janeiro de 2021

crônica da semana - o grande lago

 O grande lago

Já tive um sonho profético: era um caminho... conhecido, pavimentado, seco, ruas de bom traçado. Um muro alto de múltiplas personalidades, além, era sinal de terra firme, plana e elevada.

O paredão era motivo de contentamento. A fronteira entre o passado e o futuro sonhado, e alcançado, de sair de dentro da lama.

Poderia ser o muro da Escola Salesiana, do Catarina Labouré, do Graziela Moura Ribeiro.

Quando tive o sonho, a Pedreira e a Sacramenta formavam uma grande planície alagada. Abaixo, ao sul, estirava-se o canal que irrigava o igarapé do Galo, temido pelo talvegue de águas velozes que cortava a Angustura, e que tinha tanta força, e que trazia tanta água, que muitas e tantas vezes sequestrou crianças para as profundezas lodosas e escuras e as arrastou até o remanso do Acampamento.

Era um grande lago! Eu o vi de perto e pela primeira de outras muitas vezes, quando fui cobrar uma freguesa da mamãe. Tinha o roteiro até a Everdosa dominado. Passando dali, adentrava ao desconhecido. Seguindo orientação da mamãe, pulei das pontes largas da Everdosa para as instáveis e apodrecidas estivas da Passagem D’Outel. Caminhei pouco tempo por aquele beco estreito, ladeado de casas com alpendres gradeados de madeira e crianças protegidas por portõezinhos pensos e baixos. Meus olhos, quando saí do beco, saltaram surpresos. À minha frente, se descortinava a cidade inundada. Um mundo jurássico de água, salpicado de casinhas, entrecortado por pequenas pontes, pinguelas, pranchão inteiriço em alguns regos, travessas e atracações com cipó em outros. Traçados regidos pelo alinhamento das estivas. Ordem e simetria libertas, sem preconceitos ou medidas rígidas: uma carreira de ponte levaria o caminhante a qualquer lugar. Por vezes, até, fazendo interface com a cozinha de alguém, contornando a retrete, ou mesmo desviando de um alpendre prolongado. Sem restrições ao ir e vir.

O caminho se ramificava adiante. Dois ou três alinhamentos de palafitas se apresentavam como opção. Mentalmente, reconstruí o mapa que mamãe havia feito da área. Ajustei o rumo e achei a casa da freguesa, até rápido. De forma alguma, tranquila, porém. Ela criava uns quantos cachorros. Tive que ser rapaz para apascentá-los e me equilibrar na ponte até que ela me acudisse.

Desobrigado da missão, me dei a explorar o lugar. O alagado ia até aonde a vista alcançava. Tiras de casas separadas por boa faixa de água, quando não, por um tapete de capim verdinho que tinha uma espécie de talinho que trazia a forma de uma flecha e servia de arma poderosa nas brincadeiras com a molecada da minha rua. Continuei a caminhada naquela planura. Muito lá na frente, outras bocas estreitas surgiram. Decidi por uma. Novamente, um beco acanhado. Estiva apodrecida, uma nesga de aterro misturado com caroços de açaí e saí na terra firme. Foi quando eu vi o muro...

Anos mais tarde, depois daquela missão que mamãe me deu, e também, depois do sonho que tive, houve a necessidade de ir comprar tal coisa assim assim, lá na Senador Lemos. Chamei um táxi e me abalei aqui da Pedreira. O motorista pegou a Lomas direto, depois cortou pela Everdosa, entrou rés o canal da Passagem D’Outel e dali rodou por uma rua asfaltada, seca e de bom traçado. Antes de dobrar para a Senador Lemos, pela janela, vislumbrei ao longe, o muro. Uma lágrima rolou dos olhos. Era o meu sonho se realizando. O grande lago havia desaparecido.

 

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