O grande lago
Já tive um sonho profético: era um caminho... conhecido, pavimentado,
seco, ruas de bom traçado. Um muro alto de múltiplas personalidades, além, era
sinal de terra firme, plana e elevada.
O paredão era motivo de contentamento. A fronteira entre o passado e o
futuro sonhado, e alcançado, de sair de dentro da lama.
Poderia ser o muro da Escola Salesiana, do Catarina Labouré, do
Graziela Moura Ribeiro.
Quando tive o sonho, a Pedreira e a Sacramenta formavam uma grande
planície alagada. Abaixo, ao sul, estirava-se o canal que irrigava o igarapé do
Galo, temido pelo talvegue de águas velozes que cortava a Angustura, e que
tinha tanta força, e que trazia tanta água, que muitas e tantas vezes sequestrou
crianças para as profundezas lodosas e escuras e as arrastou até o remanso do
Acampamento.
Era um grande lago! Eu o vi de perto e pela primeira de outras muitas
vezes, quando fui cobrar uma freguesa da mamãe. Tinha o roteiro até a Everdosa
dominado. Passando dali, adentrava ao desconhecido. Seguindo orientação da
mamãe, pulei das pontes largas da Everdosa para as instáveis e apodrecidas
estivas da Passagem D’Outel. Caminhei pouco tempo por aquele beco estreito,
ladeado de casas com alpendres gradeados de madeira e crianças protegidas por
portõezinhos pensos e baixos. Meus olhos, quando saí do beco, saltaram
surpresos. À minha frente, se descortinava a cidade inundada. Um mundo jurássico
de água, salpicado de casinhas, entrecortado por pequenas pontes, pinguelas,
pranchão inteiriço em alguns regos, travessas e atracações com cipó em outros.
Traçados regidos pelo alinhamento das estivas. Ordem e simetria libertas, sem
preconceitos ou medidas rígidas: uma carreira de ponte levaria o caminhante a
qualquer lugar. Por vezes, até, fazendo interface com a cozinha de alguém,
contornando a retrete, ou mesmo desviando de um alpendre prolongado. Sem
restrições ao ir e vir.
O caminho se ramificava adiante. Dois ou três alinhamentos de palafitas
se apresentavam como opção. Mentalmente, reconstruí o
mapa que mamãe havia feito da área. Ajustei o rumo e achei a casa da freguesa,
até rápido. De forma alguma, tranquila, porém. Ela criava uns quantos
cachorros. Tive que ser rapaz para apascentá-los e me equilibrar na ponte até
que ela me acudisse.
Desobrigado da missão, me dei a explorar o lugar. O alagado ia até
aonde a vista alcançava. Tiras de casas separadas por boa faixa de água, quando
não, por um tapete de capim verdinho que tinha uma espécie de talinho que trazia
a forma de uma flecha e servia de arma poderosa nas brincadeiras com a molecada
da minha rua. Continuei a caminhada naquela planura. Muito lá na frente, outras
bocas estreitas surgiram. Decidi por uma. Novamente, um beco acanhado. Estiva
apodrecida, uma nesga de aterro misturado com caroços de açaí e saí na terra
firme. Foi quando eu vi o muro...
Anos mais tarde, depois daquela missão que mamãe me deu, e também,
depois do sonho que tive, houve a necessidade de ir comprar tal coisa assim
assim, lá na Senador Lemos. Chamei um táxi e me abalei aqui da Pedreira. O
motorista pegou a Lomas direto, depois cortou pela Everdosa, entrou rés o canal
da Passagem D’Outel e dali rodou por uma rua asfaltada, seca e de bom traçado.
Antes de dobrar para a Senador Lemos, pela janela, vislumbrei ao longe, o muro.
Uma lágrima rolou dos olhos. Era o meu sonho se realizando. O grande lago havia
desaparecido.
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