Belém na vera
É peça certa, traçada e riscada na folhinha do ano, a homenagem a
Belém, no janeiro de aniversário.
Se eu fuçar aqui nos meus apontamentos, nos 14 anos que escrevo esta
coluna, é cravadinho a cada janeiro, um encarreirado de tico-ticos, nheco-nhecos,
beijinhos e carinhos sem ter fim para esta cidade que amo. Sem falhar um ano. E
tanto, que os textos geraram até um livro. Minha última experiência editorial
deu-se com a publicação de “Janeiros”, uma coletânea trazendo Belém como personagem
principal de todas as crônicas.
A chuva bate ali
no flandre que reveste o telhado de confronte aqui de casa, faz um barulho
metálico e molhado; o vento balança o jambeiro que faz ‘renque/renque’ pra lá,
passa um pedacinho, dá uma volta desajeitada no espaço e faz ‘renque/renque’
pra cá. Um frio polar de 24 graus me leva cogitar calçar uma meia, para melhor
confortabilidade. Deixo a janela entreaberta, porque gosto de ver e ouvir a
chuva nas mais variadas modalidades de timbres e de arranjos plásticos, se realizando
no terreiro. Me ajeito na cadeira, procuro um gancho para iniciar o parágrafo,
de preferência que lembre a Pedreira, o igarapé do Zé, o estirão de mata da
aeronáutica, na margem da Dr. Freitas, os canteiros da Marquês, porque estes
são os componentes da cidade que me têm dado causas neste tempo de
acabrunhamentos e isolamento compulsório. Quando estou em tempo de criar as
primeiras frases do texto, viro estátua. Paraliso todo o corpo e um torpor
invencível toma conta de mim. Penso no que ‘mais credo é isso’ que me acontece,
que me deixa neste transe improdutivo, nesta introspecção oca e enferrujada.
Logo identifico o motivo do abilesamento: um cidadão do bem encostou o carro ali na Pedro Miranda,
abriu a mala e libertou os demônios que habitam aquele maldito aglomerado de
caixas de som. Toda a área no entorno é impactada por essa zoada. Inclusive o
meu cocuruto. Minha concentração desfaleceu e olha, até que o fogo daquele
inferno sonoro abrandasse, custou que só para eu tornar.
Torno porque sou de tornar, mas um
chiliquto de desfalecimento me espreita, me arrepia. E me deixa em alerta. É o
pânico, o medo desse embate. Desta avalanche de decibéis. Rogo para que tudo isso
passe e que reine, não o silêncio fúnebre absoluto, mas a serenidade, a
sensatez, o bom propósito de um samba ritmado na caixa de fósforo (por que
não?).
Há de se estabelecer uma reentrada, uma
brecha de luz em meio ao caos. Belém em mim é redenção. É passagem. Rito de conversão:
das ruas de seringa ao asfalto da Boulevard. Das brenhas ocidentais que nunca
anoitecem ao amanhecer plúmbeo na Pedreira. Dos rosnados perto de felinos
ancestrais ao ronco longe e turbinado de motores dos aviões lá pras bandas da
Maracangalha. Belém é riso e contradição. Risco e trovão. Verdade, versão. Minha
confortável ilusão.
Devaneio necessário. Placebo fitoterápico
de manga verde com sal. Valência diluviana de Guajarás, Pirajás e Guamás.
Abstração que me salva. Idílio e fantasia; bruma almiscarada de paixões incuráveis
por esta terra que falta um grau para ter o charme peninsular. Belém, a porta
sempre aberta (Pedreira do samba e do amor, meu perdão, minha bença).Triscas de
tristeza mergulham e se desfazem no mar-Belém de contentamentos e realizações.
Eis que Belém é maior que a realidade
crua e suja. É transcendente, gloriosa, elevada, graciosa
cidade que, na vera, quero é bem.
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