sábado, 2 de janeiro de 2021

crônica da semana - o amanhã

 O amanhã

Mamãe costumava dizer que o dia de amanhã não nos pertence. Assim de prima, pode até parecer, mas não, não negava o futuro. Apenas reconhecia que o dia seguinte deveria ser construído a seu tempo, dentro das nossas possibilidades e limitações que eram variáveis e tantas. Era um desafio diário nossa vida, por isso, sempre a expectativa de uma estratégia específica para cada momento. Cada dia era uma história única, necessária e decisiva.

Essa dinâmica, este porvir independente de planos e agendas, não era, de forma alguma uma propriedade da minha família. Naqueles tempos, a vida era dura para muita gente. No início da década de 70, do século passado, sob o coturno dos militares, O Brasil convivia com uma taxa de mortalidade infantil beirando cem crianças para cada grupo mil. A expectativa de vida não ia além dos sessenta anos. E a filharada era muita. Do jeito que acontecia na minha casa, se dividíssemos a Pedreira em cinco partes, em quatro delas, o responsável pela casa partilharia o mesmo dilema noturno de minha mãe: como venceríamos o dia de amanhã? A realidade era certeira. Saberíamos somente após arregalar os olhos. Da precisão, vinha a inspiração.

Sim, tinha a outra parte que não perdia noites de sono. Para esta pequena parte, a vida admitia a previsibilidade de um amanhã sem maiores perturbações. Conheci gente que não se avexava pra arrumar o que comer no dia seguinte. A comida aparecia como se houvesse uma combina. Sem obstáculo e nem ressalvas. Era difícil para mim, entender aquela diferença que marcava o dia de uns e o dia de outros. Nas vezes que varava na casa de amigos, mais aqueles de grana, na horinha mesma do almoço, sem crivo, era convidado para sentar à mesa com eles. Percebia ali uma fartura, uma facilidade que lhes permitiam até exercer a caridade, colocando um prato a mais na mesa. Uma atitude que demonstrava um conforto que eu não via na maioria das casas que freqüentava. Não era intencional. E nem esboçava qualquer demanda, mas como era rueiro, ajudava a mamãe nas vendas e estudava no intermediário, aqui, ali era mesmo agregado a um almoço na casa de alguém. (Depois soube, à boca pequena, que, a mais intempestiva visita, eu não conseguia disfarçar o olhar de pidão).

As concessões políticas, sociais; Algumas conquistas alcançadas pelos trabalhadores modificaram o cenário. Os números do Brasil melhoraram em 50 anos.

Embora os pequenos avanços tenham sugerido a fé no amanhã, para muita gente vale ainda a construção diária da vida. Mas, vá lá que seja, com alguma fé no porvir. Penso que ao longo dos anos nos animamos até a planejar. Reconhecemos oportunidades na educação. Alvejamos melhoria na qualidade de vida com políticas sociais afirmativas, inserção em ambientes jamais freqüentados. Para mim, o futuro ficou menos anuviado. Dava pra ver uma nesga se revelando.

Num repente, tropeçamos e regredimos 50 anos. Assustou-me profundamente a declaração de uma especialista, em um jornal de TV, analisando estes tempos de pandemia, e com o agravante de um presidente que nega a gravidade do momento. Disse ela que, do jeito que está, nós os brasileiros não devemos contar com o amanhã. E pelo que percebi, nem do jeito que o amanhã era entendido pela minha mãe. Eita! Tremi dos pés a cabeça.

Depois a especialista fez uma ponderação e nos deu uma esperança. Para que o amanhã possa ser uma possibilidade, temos que nos reconstruir.

Umbora nessa!

Nenhum comentário:

Postar um comentário