O amanhã
Mamãe costumava dizer que o dia de amanhã não nos pertence. Assim de
prima, pode até parecer, mas não, não negava o futuro. Apenas reconhecia que o
dia seguinte deveria ser construído a seu tempo, dentro das nossas
possibilidades e limitações que eram variáveis e tantas. Era um desafio diário
nossa vida, por isso, sempre a expectativa de uma estratégia específica para
cada momento. Cada dia era uma história única, necessária e decisiva.
Essa dinâmica, este porvir independente de planos e agendas, não era,
de forma alguma uma propriedade da minha família. Naqueles tempos, a vida era
dura para muita gente. No início da década de 70, do século passado, sob o coturno
dos militares, O Brasil convivia com uma taxa de mortalidade infantil beirando
cem crianças para cada grupo mil. A expectativa de vida não ia além dos
sessenta anos. E a filharada era muita. Do jeito que acontecia na minha casa,
se dividíssemos a Pedreira em cinco partes, em quatro delas, o responsável pela
casa partilharia o mesmo dilema noturno de minha mãe: como venceríamos o dia de
amanhã? A realidade era certeira. Saberíamos somente após arregalar os olhos.
Da precisão, vinha a inspiração.
Sim, tinha a outra parte que não perdia noites de sono. Para esta
pequena parte, a vida admitia a previsibilidade de um amanhã sem maiores
perturbações. Conheci gente que não se avexava pra arrumar o que comer no dia
seguinte. A comida aparecia como se houvesse uma combina. Sem obstáculo e nem
ressalvas. Era difícil para mim, entender aquela diferença que marcava o dia de
uns e o dia de outros. Nas vezes que varava na casa de amigos, mais aqueles de
grana, na horinha mesma do almoço, sem crivo, era convidado para sentar à mesa
com eles. Percebia ali uma fartura, uma facilidade que lhes permitiam até
exercer a caridade, colocando um prato a mais na mesa. Uma atitude que
demonstrava um conforto que eu não via na maioria das casas que freqüentava.
Não era intencional. E nem esboçava qualquer demanda, mas como era rueiro,
ajudava a mamãe nas vendas e estudava no intermediário, aqui, ali era mesmo
agregado a um almoço na casa de alguém. (Depois soube, à boca pequena, que, a
mais intempestiva visita, eu não conseguia disfarçar o olhar de pidão).
As concessões políticas, sociais; Algumas conquistas alcançadas pelos
trabalhadores modificaram o cenário. Os números do Brasil melhoraram em 50
anos.
Embora os pequenos avanços tenham sugerido a fé no amanhã, para muita
gente vale ainda a construção diária da vida. Mas, vá lá que seja, com alguma
fé no porvir. Penso que ao longo dos anos nos animamos até a planejar.
Reconhecemos oportunidades na educação. Alvejamos melhoria na qualidade de vida
com políticas sociais afirmativas, inserção em ambientes jamais freqüentados.
Para mim, o futuro ficou menos anuviado. Dava pra ver uma nesga se revelando.
Num repente, tropeçamos e regredimos 50 anos. Assustou-me profundamente
a declaração de uma especialista, em um jornal de TV, analisando estes tempos
de pandemia, e com o agravante de um presidente que nega a gravidade do
momento. Disse ela que, do jeito que está, nós os brasileiros não devemos
contar com o amanhã. E pelo que percebi, nem do jeito que o amanhã era
entendido pela minha mãe. Eita! Tremi dos pés a cabeça.
Depois a especialista fez uma ponderação e nos deu uma esperança. Para
que o amanhã possa ser uma possibilidade, temos que nos reconstruir.
Umbora nessa!
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