A vida ensina
A gente sempre
se encontrava ali para um respiro, tomar uma água, um café. A sala funcionava
como um local de descanso. Rodávamos os turnos, e por conta das peculiaridades,
as jornadas da madrugada, certamente, eram as mais tranqüilas. Então, naquele
tempinho que a gente desanuviava e tomava um ar, trançávamos uma prosa, nos
conhecíamos e rolava a parceria.
A vida ensina. Mesmo
se a gente não domina as equações, as contas com fração, ou a teoria dos
conjuntos, a vida, de palmo em cima, ensina. Quer ver lição mais facinha assim
de entender sobre a desvalorização da moeda é a mudança no padrão da melhor
coxinha produzida na Pedreira. Qual não foi minha surpresa quando chegou meu
pedido ontem. Tudo nos conformes. Menos a envergadura. O tamanho da coxinha
caiu quase pela metade. O preço permaneceu o mesmo, mas a elipse, que era
rechonchuda, desinflou. O meu lanchinho foi o exemplo clássico de
desvalorização da moeda. O mesmo dinheirinho comprando bem menos do que
comprava antes. Meio a contragosto, compreendi o sufoco que está passando o
pequeno comerciante do meu bairro. Me conformei e como sempre, me encantei com
a, embora menorzinha, melhor coxinha da Pedreira.
O rapaz
trabalhava comigo no turno. Vinha de Irituia e a origem dele animava a conversa
porque andei por ali. Participei da festa do Carimbó, explorei a Vila Pedra,
tomei birissuco com a galera.
Era casado, já
tinhas dois filhos. Conseguira aquele emprego a muito custo. O ganho era pouco,
mas ele pensava melhorar. Estava estudando.
Já no adiantado
do Ensino Médio, ainda tinha algumas dificuldades. Eu conseguia lições, textos
próprios da série que ele cursava, matérias de História, Português, arrumava
uma tirinha de tempo, no turno e exercitava as questões com ele. Fazíamos boas
discussões quando analisávamos contextos históricos, aspectos da sociedade
atual. Assim como tantas pessoas, formava opinião a partir de programas de
televisão sensacionalistas, media fenômenos sociais que o rodeavam com a régua
da mídia. Com o tempo, percebi um avanço. As provas que me trazia, revelavam um
novo modo de ver e interpretar o mundo. Aqueles resultados me animavam e eu me dedicava
mais. Incentivava. Cobrava. Tinha uma deficiência quase intransponível com a
matemática. Uma das tarefas que me levou para resolvermos juntos tinha uma
sequência de contas com números decimais. Ele adiantou: não sabia fazer. Não
entendia patavina daquelas contas de números com vírgula. Pus pra rodar o meu
instinto e procurei métodos para fazê-lo crer que ele sabia usar aqueles
números.
A organização
das parcelas, com vírgula embaixo de vírgula ou dos fatores, contados os algarismos
pra lá e os pra cá da vírgula, se realizam na rotina, no dia-a-dia. Simulei
meios para que ele reconhecesse essas manifestações práticas. Perguntei se na
rua dele vendia chope e quanto custava. Sim. 25 centavos. E se eu comprar
quatro chopes? Um real. E mercadinho, tinha por lá? Já comprou uma quarta de
feijão, meio quilo de farinha, cem gramas de manteiga? Sim. Alguma vez foi
enganado, levou o peso errado, o troco a menos? Não. Tás vendo, evidencie-lhe
empolgado. Tu sabes sim. Só não sabes pôr no papel.
A vida ensina.
Desafia e inspira. A sobrevivência exige decodificações muito particulares. O
Conhecimento organiza e elabora saberes. A vida ensina. O rapaz terminou o
Ensino Médio. Mudou de emprego e hoje, sei que opera na atividade portuária de
Barcarena. Envolve-se, na lida diária, ora, ora, com números decimais.
Bela crônica, deu um flashback de Boas lembranças...AGR
ResponderExcluirImpecável, como sempre!
ResponderExcluirQuero comer essa coxinha..
ResponderExcluir