Isso é Fundo de
Quintal
Aconteceu
comigo, durante este tempo de isolamento social, o que eu mais temia. Comprei
uma caixa de som. Parece um robozinho. Desses que reproduz ‘blutufe’, ‘pendraive’,
internet e tale’quais em decibéis suficientes para homenagear o sossego dos
vizinhos.
No domingo,
baixei no celular uma seleção só de sambas e, após o almoço, joguei pro
robozinho. Não abusei não, adianto que é brincadeira minha essa marmota de
atazanar a vida dos outros. Graduei um volume discreto, aquele tantinho de nos
aprazer somente a nós no aconchego sonoro do lar e nas imensidões silenciosas
da saudade. Só os clássicos! Com a clareza do som novinho em folha e a
flamejante chama da comoção em cada faixa.
Quando o Martinho
da Vila entrou equilibrando em brandos tons os primeiros versos de ‘Disritmia’,
voltei os olhos pro quintal e resgatei aqueles momentos dos saraus em que alguém
puxava o samba, com o mesmo abrandamento, mas não se equilibrava nos versos e a
gente vacilava na letra. Nessa hora pensei alto “quem salvava a roda era o
Vitu. Segurava essa música no sarau que era uma maravilha. Sabia a letra
todinha”. Foi então que o aplicativo trocou de faixa e veio uma sequência com o
Fundo de Quintal.
E eu, atado aos cordéis
da pandemia, amarrado a súbitos temores, ressabiado com os acasos e as escolhas
do vírus... solitário ante a caixa-robozinho, me surpreendo com esse som
clarinho dos tantãs, do repique de mão, instrumentos engendrados pelos
‘velhinhos’ do grupo de pagode; e que marcaram (sublimaram) e revolucionaram as
batidas do samba.
Adiantei os
olhos além das memórias do Sarau do Quintal e dei com a luz do meio-dia se
espalhando pelo estrito retângulo que se forma no longe do chagão. Minha
clausura, minha deserção, minha entronização no reino das particularidades, das
íntimas lágrimas, dos possessivos tremores, da hermética e resistente pulsação
acelerada. Seis meses no ‘esconderismo’ secreto onde nenhuma de suas balas
puderam me atingir seu vírus boboca dos infernos! O portão, o jambeiro e o pé
de jucá me acodem como se couraças de aço fossem.
Antes de
refletir sobre a melhoria na qualidade do som e como era antes a minha vida sem
o robozinho, me veio um medo verdadeiro, à bordo de uma fantasia que criei: um
estado de pressão total. Abandonado em uma redoma virtual. E como no filme
Matrix, aqueles monstrinhos se esforçando, usando todos os seus talentos e a força
dos tentáculos metálicos para romper as paredes que me protegiam. Não me
perguntem como, mas sabem quem me salvou das sentinelas malvadas? O jambeiro, o
pé de jucá e o portão desenhado em luminoso retângulo. Éraste! Chega suei de
pavor, tensão e um incontrolável odiozinho por causa de um bando de gente que conheço
de vista, de perto mesmo e que desgraçadamente, cerra fileiras com as sentinelas.
Em pensamentos, palavras, gestos e intenções. Tentáculos!
Fazia tempo que não tomava uma cervejinha, e ainda em meio a uma letargia ‘disritimada’, em mirabolantes pensamentos onde se misturavam os sambas que cantávamos no Sarau do Quintal, as sentinelas da Matrix e a luz, mãe de todas as cores, que vinha do portão, dei com o copo sobre a mesa. A cerveja quente, um mosquitinho tricotando zunidos baixinhos, na borda, espuminha rala. Tentei interagir com alguém da casa, mas o que me ocorreu, foi instintivamente, apontar o dedo para o robozinho que ainda encarreirava os sambas da galera de Ramos, abrir um sorriso e sentenciar: isso é Fundo de Quintal, é pagode pra valer.
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