sábado, 5 de setembro de 2020

crônica da semana. O touro de cara pro céu

 

O touro de cara pro céu

O tempo foi passando e eu fui ficando velho olhando pro céu. Por vezes dormia e acordava sem chão, sem peso, sem lei que me prendesse à terra. Imediatamente, eu me recompunha e abraçava a gravidade. Meu planeta vence e me atrai mais que o profundo, cintilante e silencioso infinito.

Eu sou de Touro com regente em Vênus. Sou touro de cara pro céu. Sou gente descrente, sou jeito insensível. Displicente discípulo, transgressivo servo. Um poeta a procura da lua todo mês, às vezes no mais expressivo escuro. Por outra, me pego metódico, medindo distância de estrela a meio olho, a palmo diante, a indicador indicando; ou com o polegar, assim, de lado. Aldebaran é tão longe!

Certa vez eu, touro de cara pro céu, acompanhei a noite minuto a minuto. Desde o despontar da primeira estrela no horizonte até a lua cheia no alto da abóbada. O brilho da lua ofuscou a exuberância de Aldebaran que é muito longe. Nuvens vieram de fora e nem eram das minhas posses. Um vento rasteiro rastejou sob meus olhos, deu um ardor na alma, um achaque em minhas tolerâncias. Lagrimei. Foi aí que choveu e eu me vi envelhecendo molhado olhando pro céu.

Touro é uma constelação que vemos aqui no hemisfério sul, em horários mais apropriados, entre novembro e maio. Chama a atenção porque vem acompanhada de Sírius, a estrela mais brilhante do céu, das Três Marias, da gigante vermelha Aldebaran e de um aglomerado fofíssimo, as Plêiades, também conhecido como As sete irmãs, Chavinha ou ainda, Tercinho. Na Antiguidade, os gregos perceberam aquele belo ajuntamento de estrelas e criaram histórias sobre ele. Viram ali o grande caçador, e seu cinturão luminoso; a matilha agitada e o cão maior, um imponente touro. Perceber sair daquele V de cabeça pra baixo o desenho perfeito de um touro, requer muita imaginação. Admiro a constelação, mas não consigo formar a figura. Compete contra a minha percepção, atualmente, obvia aversão a este tipo de gado.

E também não creio que um animal imaginado, vagando pelo espaço em uma ordem impecável, possa interferir na minha personalidade, no meu futuro e nos meus humores desordenados.

Na ponta do V virado pra baixo e que seria a cabeça do touro, distingue-se o vermelho brilhante, de Aldebaran. Cheio de fascínio, inspirando mistérios, refletindo a arte espontânea, de plástica apurada, imensa e casual . Mas Aldebaran é tão longe!

Nada, nem minha descrença, nem meu cinismo (com regente em Vênus), ou a minha desconfiança antigravitacional me impede de ser um touro de cara pro céu. Porque a constelação é um deslumbre! O universo é cativante e convidativo. As estrelas mundiam. Há uma eternidade cheia de nadas, sideral, nos chamando, aos confins, às fronteiras invisíveis, às margens indivisas, aos abismos cósmicos; a cada noite, para nos contar paixões.

Por vezes, touro de cara pro céu, eu durmo. Cheio de versos vazios, desejos opacos, esperanças, sonhos e sono. Cuido para que a vigília me resgate do éter tão cativante. Torno ao chão esturricado da Terra, meu planeta regente, que me atrai mais que os aglomerados e as mitologias. É absolutamente necessário estarmos juntos, nos atrairmos. Porque o tempo está a passar e me cutuca e me alerta que não posso somente ir-me ficando velho e também, não devo lançar-me sem regras vagando pelo céu. Tenho que acordar gravitacional e amar a vida sobre meu planeta. Ainda mais que Aldebaran de Touro é tão longe!

 

Um comentário: