Tudo isso será teu
O pó da estrada
escondia o caminho. A gente deixava o carro passar, dava um tempo pra poeira
sentar e continuava o trajeto a pé, pela estradinha mal arrumada que nos
deixava perto da entrada do nosso acampamento. Era uma estrada usada pelos
garimpeiros e alguns proprietários de terra que se distribuíam pelos ermos da Perimetral
Norte.
Deixávamos a
frente de trabalho, fora do horário, porque o rapaz que me acompanhava tinha
que ir urgente pra cidade. Nem bem tinha voltado. Passou os dias legais de
licença paternidade em Macapá, mas já tinha que voltar. A criança não vingou.
Não dava pra esperar o transporte rotineiro. Liberei o rapaz do trabalho e o
acompanhei até o acampamento. Pegamos o atalho e ganhamos o rumo da base, para
que ele se arrumasse, pegasse as coisas, um transporte e ainda alcançasse o
horário do trem, na estação de Cupixi. Enquanto vencíamos aquele estirão
toldado de vez em quando por uma chuva de poeira vermelha e fina, ele me
contava da vida. Lamentava a perda do filho. Era o segundo. Achava que era uma
sina. O primeiro já havia nascido com problema. Cabia na palma da mão. Falava
com um certo conformismo. Dizia que só tinha filho peco. Aceitava o destino e
entregava tudo nas mãos de Deus. No dia seguinte enterraria o anjinho sem
duvidar um só instante que aquela era a vontade do Senhor.
Depois que
despachei o transporte para a estação do Cupixi, atinei: não sabia o que era
peco. Mas pelo que ele falou na nossa conversa, dava pra imaginar.
O outro já não
aceitava o destino. Vinha da Bahia. Deixou a família no recôncavo e foi
procurar melhoria de vida nos garimpos do Oiapoque. Não se deu. Era homem
forte. Mãos calejadas, acostumadas ao trabalho duro na roça. Não se adaptou
àquela vida no garimpo. Sonhava era com um pedaço de terra pra plantar. Sem
muita opção, conseguiu emprego e foi trabalhar comigo de ajudante geral. Fazia
de tudo, mas naqueles tempos, com folga nas frentes de trabalho e com uma
deficiência na logística, foi deslocado para dar apoio na cozinha. Levava o
nosso almoço no campo. Numa ocasião, fazíamos uma pesquisa na borda de um
milharal. Uma fazenda toda fatiada em pequenas culturas. Deixou nosso cumê,
esperou todo mundo acabar, organizou as marmitas, mas não voltou pro
acamamento. Ficou por ali. Subiu um barranco próximo e sentou lá em cima,
pensativo. Deixei a turma no batente e fui ter com ele.
O lugar era um
mirante privilegiado. De lá dava pra ver a imensidão da fazenda, os tipos de
plantações, lá no fundo o céu azul. Houvesse uma comparação para aquele
cenário, pescaria das tentações que Cristo recebeu no deserto. “Se me adorares,
tudo isso será teu”.
Mas ele só
queria um pedaço de terra.
Sentei ao lado
dele, ouvi as histórias do recôncavo, do garimpo. Do inconformismo. Nunca na
minha vida identifiquei tanto amor à terra se denunciando em uma pessoa e numa
linguagem tão verdadeira. Chegava a descrever procedimentos, condutas, cuidados
que uma roça exige. Contou como se preparam as tarefas. Mencionou métodos de
irrigação, manejo de frutas e hortaliças. Era um homem da terra. Senhor da
terra sem terra. Falava, fitava o horizonte e, sem se notar, espalmava a mão no
chão em que nos acomodávamos. Como se quisesse entrar no solo, misturar-se ao
húmus. Cavar, cultivar um destino diferente daquele de entregar marmita para a
turma no campo.
Bem lá adiante,
já pertinho do céu, o pó da estrada escondia o caminho e os sintomas de um país
peco.
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