sábado, 24 de outubro de 2020

crônica da semana - peco

 Tudo isso será teu

O pó da estrada escondia o caminho. A gente deixava o carro passar, dava um tempo pra poeira sentar e continuava o trajeto a pé, pela estradinha mal arrumada que nos deixava perto da entrada do nosso acampamento. Era uma estrada usada pelos garimpeiros e alguns proprietários de terra que se distribuíam pelos ermos da Perimetral Norte.

Deixávamos a frente de trabalho, fora do horário, porque o rapaz que me acompanhava tinha que ir urgente pra cidade. Nem bem tinha voltado. Passou os dias legais de licença paternidade em Macapá, mas já tinha que voltar. A criança não vingou. Não dava pra esperar o transporte rotineiro. Liberei o rapaz do trabalho e o acompanhei até o acampamento. Pegamos o atalho e ganhamos o rumo da base, para que ele se arrumasse, pegasse as coisas, um transporte e ainda alcançasse o horário do trem, na estação de Cupixi. Enquanto vencíamos aquele estirão toldado de vez em quando por uma chuva de poeira vermelha e fina, ele me contava da vida. Lamentava a perda do filho. Era o segundo. Achava que era uma sina. O primeiro já havia nascido com problema. Cabia na palma da mão. Falava com um certo conformismo. Dizia que só tinha filho peco. Aceitava o destino e entregava tudo nas mãos de Deus. No dia seguinte enterraria o anjinho sem duvidar um só instante que aquela era a vontade do Senhor.

Depois que despachei o transporte para a estação do Cupixi, atinei: não sabia o que era peco. Mas pelo que ele falou na nossa conversa, dava pra imaginar.

O outro já não aceitava o destino. Vinha da Bahia. Deixou a família no recôncavo e foi procurar melhoria de vida nos garimpos do Oiapoque. Não se deu. Era homem forte. Mãos calejadas, acostumadas ao trabalho duro na roça. Não se adaptou àquela vida no garimpo. Sonhava era com um pedaço de terra pra plantar. Sem muita opção, conseguiu emprego e foi trabalhar comigo de ajudante geral. Fazia de tudo, mas naqueles tempos, com folga nas frentes de trabalho e com uma deficiência na logística, foi deslocado para dar apoio na cozinha. Levava o nosso almoço no campo. Numa ocasião, fazíamos uma pesquisa na borda de um milharal. Uma fazenda toda fatiada em pequenas culturas. Deixou nosso cumê, esperou todo mundo acabar, organizou as marmitas, mas não voltou pro acamamento. Ficou por ali. Subiu um barranco próximo e sentou lá em cima, pensativo. Deixei a turma no batente e fui ter com ele.

O lugar era um mirante privilegiado. De lá dava pra ver a imensidão da fazenda, os tipos de plantações, lá no fundo o céu azul. Houvesse uma comparação para aquele cenário, pescaria das tentações que Cristo recebeu no deserto. “Se me adorares, tudo isso será teu”.

Mas ele só queria um pedaço de terra.

Sentei ao lado dele, ouvi as histórias do recôncavo, do garimpo. Do inconformismo. Nunca na minha vida identifiquei tanto amor à terra se denunciando em uma pessoa e numa linguagem tão verdadeira. Chegava a descrever procedimentos, condutas, cuidados que uma roça exige. Contou como se preparam as tarefas. Mencionou métodos de irrigação, manejo de frutas e hortaliças. Era um homem da terra. Senhor da terra sem terra. Falava, fitava o horizonte e, sem se notar, espalmava a mão no chão em que nos acomodávamos. Como se quisesse entrar no solo, misturar-se ao húmus. Cavar, cultivar um destino diferente daquele de entregar marmita para a turma no campo.

Bem lá adiante, já pertinho do céu, o pó da estrada escondia o caminho e os sintomas de um país peco.

 

 

 

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