Enxadeco e chibanca
Uma ferramenta é
o que o nome diz, mesmo: uma enxada pequena, magrinha e compridinha. A outra,
como se fosse uma picareta, é constituída de duas pontas. De um lado, a parte
cortante tem as aparências do supracitado enxadeco; do outro, forma uma ponteira
de corte afiado, à guisa de uma talhadeira. Dou destaque a essas peças porque
compunham as ferramentas necessárias para cavar poço, nas campanhas de Geologia
que minha turma fazia margeando o Xingu. E também, porque eu vi, dias atrás, um
filme que tinha uma cena onde, trabalhadores de uma pedreira, ao terminar a
jornada, cada qual pegava sua ferramenta e ganhava o rumo de casa. O filme, uma
versão de O Cortiço, obra de Aluízio Azevedo, autor maranhense que inaugurou o
Naturalismo no Brasil, demonstrava, naquele cortejo saindo da pedreira, a
ligação traçada entre o homem e sua ferramenta de trabalho.
Logo tornei à
margem do Xingu e imaginei o dia dos pequenos que cavavam poço na minha equipe.
Alguns nomes emergem da memória. Jacinto, Bené, Firmino, Onça. Trabalhavam em
dois. Chegavam do campo, e antes do descanso merecido, ainda se detinham
tratando do material. Lavavam, faziam pequenos reparos, afiavam a lâmina no
esmeril, na lima. Acunhavam, introduziam um calço aqui, outro ali. Traziam
dignidade àquela relação, muitas vezes vista como de valor reduzido. Imputavam
àquelas peças a significância assumida e defendida por eles. Sabiam que pela
natureza bruta do ferro e da terra escavada, se o equipamento não estivesse bem
cuidado, mais energia gastariam, sofreriam mais, destinariam grande esforço a
tarefas de poucos resultados. Havia entre eles a cumplicidade de fio, suor,
desterro e corte.
Parece estranho,
para quem não viveu dias de peão, uma parceria entre o trabalhador e qualquer artefato
de produção, que possa beirar a afeição. Não era amor. E por razões alhures
assinaladas, ódio não poderia ser. Penso, porém o respeito, intermediar esta intimidade.
Eu mesmo, nos primeiros anos de Barcarena, quando fui apresentado ao cabo de
uma pá, no lugar de odiá-la com todas as minhas forças, busquei aliançar-me
para que a dor fosse branda. Houve de, a cada fim de jornada, eu limpar, lavar,
desempenar minha espátula, guardá-la em lugar que ninguém pudesse achar e
querê-la ao meu lado sempre, como amparo e consolo; como renitente tradutora de
minhas mágoas. Seríamos nós dois insatisfeitos, embrutecidos. Ineficazes
desencrostadores, noite à dentro, de frio, zunidos, vapores, calores
predadores. Reclusão e um tênue e necessário fio de razão.
Naqueles tempos
outros de Movimento jovem lá na Escola Salesiana, ousávamos. Modificávamos
aqui, ali, com cuidado, o rito da Missa, de forma que o Padre Lourenço, embora
com reservas, permitisse as mudanças. Certa vez, articulamos um ofertório, em
que depositávamos no altar, objetos do dia-a-dia, peças de roupa, máquinas e
instrumentos que compunham o acervo doméstico. A simbologia era de oferecer
ali, a nossa vida ou elementos construtores da nossa vida.
Acho que é isso
que pretendo nesse Círio. Oferecer à Virgem Santa, enxada, chibanca, a
lembrança e o carinho que guardo por Jacinto, Bené, Firmino, Onça, a turma que
cavava poço e que trabalhava em pares. Também para agradecer porque uma vez
desci num poço que os meninos haviam cavado, já há algum tempo, e uma cobra
tinha escapulido lá pra dentro. Se escrevo esta história é por obra e graça da
Santinha.
Essa tua crônica é uma festa para minha alma interiorana que tão bem conhece as "ferramentas" citadas e descritas. Mais: uma viagem a todos os lugares que a palavra pode levar.
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