sábado, 17 de outubro de 2020

crônica da semana - encontro de lilases

 Encontro de lilases

Semana minada de emoções, decepções com insanos ajuntamentos de gente, surpresas e chuvas da tarde, aquela aziazinha remanescente das extravagâncias do almoço de domingo e eu me vendo bestinha da silva de descobrir, em tantos anos escrevendo aqui e alhures, não ter, até então, incorporado ao meu vocabulário a palavra composta por justaposição, “arco-íris”. É vera. Não tenho na memória o registro deste belo e intrigante espetáculo nas minhas prosas, tanto que fui às pesquisas na escrita normativa para poder grafá-la aqui na justaposta certeza do hifenizado colorido, correto e aprovado pela recente reforma. E que arco-íris fez domingo passado, heim! Arrasou! Veio em dois. Para marcar o dia. Matizou o céu do Círio diferente. Mamãe, que não descartava os ditos e os mistérios, se entre nós ainda estivesse, por certo cravaria: “parece uma coisa”.

O arco-íris se realiza a partir da conjugação de um fenômeno meteorológico, mais um processo físico ótico e uma dose fundamental de sensibilidade humana. A presença de água na atmosfera, um solzinho brilhando em baixo ângulo e nosso olhar de observador encantado são os elementos necessários para que o arco se dobre em um espetáculo de cores que entontece a gente.

É imagem difícil de explicar. O gênio de Newton, há mais de 400 anos, suavizou nossas inquietações deduzindo sete cores principais que formam o arco-íris. Mas lá nos escaninhos científicos certificam-se centenas, milhares, milhões de milhares de tons e semitons entre o vermelho e o violeta do espectro desvelado no céu.

E no domingo, dois arco-íris se formaram. Compuseram com a igreja de Nazaré, um cenário único, plástico, divinizado em coração de mãe.

Não sei se diante de tanta beleza e de uma nesgazinha de bem-vinda incompreensão (do fenômeno, Newton, espectro...) ou de uma oportuna crença (mamãe, mistério... “parece uma coisa”); não sei se foi percebido, por quem presenciou o fenômeno, o detalhe de a ordem das cores, nas faixas que compõem o arco-íris, se inverter, de um exemplar para o outro. E esta constatação dá chance ao mix de sentimentos se justificar, quando nos deparamos com a contraposição, com o encontro de lilases, com o distanciamento dos vermelhos, com imensidão de luz traduzida nas sete plenas, infinitas cores.

O que os nossos olhos acreditam ver, também sugerem a transcendência.  O arco-íris é citado no Antigo Testamento como o símbolo da aliança entre Deus e os homens, após o dilúvio.  É uma mensagem. Uma certeza.

O céu de um domingo de Círio, em meio a tantos problemas que enfrentamos atualmente; um domingo de Círio, por certo, sem paralelo na história. Sem procissão, sem Corda, sem o Carro dos Milagres. O céu de um domingo do Círio, colorido por um fenômeno físico, formado em duplicidade, em choque de lilases, para muita gente foi um sinal de novos rumos e tempos (“parece uma coisa”, uma mensagem, a bênção da Virgem de Nazaré...).

Quando morei fora de Belém, por um período de mais de dez anos, minha mãe, todo Círio, mandava pra mim um roc- roc. O brinquedo era símbolo. Era mensagem. Era certeza de nossa aliança. Fez parte da minha felicidade daqueles tempos em diante.

Em isolamento, neste Círio, não saí de casa, não vi a santinha, não comprei meu brinquedo de miriti.

O céu do domingo cortou e arou. Foi consolo e conforto. Trouxe pra mim um sentimento de esperança, de Círio e roc-roc. Espero que para o coração do mundo também.

 

 

 

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