quinta-feira, 14 de maio de 2020

crônica da semana - preso no cipoal


Preso no cipoal
Naqueles anos de trabalho em Altamira, conciliávamos os humores do tempo com nossas atividades. No período de estio, em que o nível do rio baixava, programávamos frentes de serviço para os pontos mais difíceis de acessar nas grandes águas.
Um deles era bem defronte do nosso acampamento. Pertinho, bastava contornar uma lagoa que já avistávamos a cachoeira mais braba da região. Durante o inverno, nem pensar em desafiá-la. No verão era tranquila. Baixa vazão. Pouca energia. Era a hora da coragem.
A área de trabalho compreendia todo o contorno dos morros que se erguiam na margem direita. A voadeira nos deixava no lajeiro ao pé do primeiro morro e a gente embicava pra cima. Uma subida radical. Parede bastante inclinada, um varadouro bem acidentado, com o bônus de palmeiras espinhentas e blocos de rochas como obstáculos no caminho. Era tão perigoso alguém rebolar lá de cima, que a primeira operação, foi instalar um corrimão tecido em cipó, ao longo da picada, pra gente ir se segurando.
Quando chegávamos lá em cima, desenvolvíamos o mapeamento. Entrávamos nas picadas, descíamos mapeando, subíamos, voltávamos para o início, descíamos de novo e por assim em adiante. Fazíamos o ziguezague que a missão exigia.
Nesse sobe-desce, ficamos conhecendo a distribuição da vegetação naquela margem. A parte mais baixa e próxima ao rio era constituída de uma vegetação arbustiva, de galhos finos e entrelaçados, à guisa de um cipoal; um pouco acima, era a área de transição não muito trançada. No topo dos morros, o ambiente chamava a atenção. Era como se fosse um bosque. Árvores espaçadas e altas, salões planos cobertos de folhas secas e muito, muito ventilado. Um maranhense que integrava a equipe, logo se apressou em comparar aquele ambiente às salas refrigeradas dos bancos de Altamira. Então, cada morro tinha seu banco. O Banco do Brasil, o Banco da Amazônia, do Pará. E como apresentava ser este ambiente muito agradável, marcávamos sempre para fazer as refeições num desses topos. Antecipadamente avisávamos para o marmiteiro que naquele dia, o almoço seria servido no banco tal, este ou aquele.
Da feita que a gente desembarcava da voadeira e atingia o topo, a missão era abrandada. As picadas já estavam abertas, limpas, o custo era a gente ter pique para subir e descer a encosta. O sacrifício mesmo era a subida inicial, que era um caminho improvisado. Era uma escalada diária pra deixar o calcanhar em carne viva. E foi abusado dessa subida, que inventei moda e fiquei, como hoje, preso no cipoal.
Todos na equipe tinham o seu facão. Era ferramenta de trabalho. Eu tinha o meu, bem menor e desamolado que só, o meu facãozinho. Servia para afirmar a minha serventia, ratificar os meus dons. Com ele, eu tirava pau no mato para armar meus banquinhos a cada praça de amostragem que fôssemos nos demorar mais um pouco. A peãozada dava a nota para o meu banquinho. Outro talento avaliado era a qualidade dos cigarrinhos que eu confeccionava.
Enquanto a turma estava na amostragem, eu sentado no meu banquinho, ficava tecendo os fininhos. Separava o tabaco picado, as sedas, o algodão (o meu era com filtro de algodão para amenizar a pancada do bicho). No intervalo da tarefa a gente fumava e a galera dava a nota para os meus porronquinhas. Para tirar um dez, a maioria tinha que ficar do jeito de um roliúde.
Aí teve o dia que impinimei. Desci no lajeiro, mas não encarei a ladeira. Me adiantei pelas pedras e fui por baixo. A idéia era fazer um arrodeio pela ombreira e já sair lá na área de trabalho sem a peleja da ladeira salamalígna.
Sobrou pra mim. Avancei um pouco, mas logo na frente, dei no trançado de galhos. Fazia um esforço, desviava, me abaixava, ia varando. O espaço foi ficando apertado. Tentei dar umas facãozadas, mas os galhos finos e flexíveis, mandavam o facão de volta sem sucesso. Teve uma hora que não andei mais, nem pra frente, nem pra trás. Fiquei preso no cipoal. Tive que pedir socorro. O combinado eram gritos prolongados e com um único som, em ô ou em ú, para que o vento o propagasse para longe. Um tempo depois, ouvi os sinais como resposta. Naquele dia, o meu resgate deu um trabalho extra para a equipe. 



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