sexta-feira, 22 de maio de 2020

crônica da semana - José Régio


José Régio e a viola de 12 cordas
A gente se dá a cada patetice, né. Vergonha não tenho de me declarar desatento aos fatos mais banais. Por força até de uma impressão antiga, de falsas convicções, me embrenho nas mancadas, me embolo nas embrenhadas.
Outro dia, fazendo o resgate do poema mais famoso do escritor português José Régio, na internet, dei com a imagem de um homem de sobrancelhas largas, lábios finos, cabelo rés-o-gasgo nas laterais da cabeça e com um voluminho no cocuruto, olhos escuros expressivos.
Totalmente diferente de como eu imaginava o poeta.
Parece estranho o desencontro, até porque, quando estive em Portugal, em 2012, visitei a casa dele, a praça que leva seu nome, monumentos e placas de homenagens, distribuídas pelas ruas de Vila do Conde, cidade natal de Régio. Mas, olha, patetice minha. Não liguei a obra à pessoa. Talvez satisfeito apenas com a substância dos poemas, me desliguei da figura do poeta.
Mas há outra explicação para este desprendimento.
Imaginei sempre o poeta ter os traços, a aparência de uma outra pessoa.
A idealização de José Régio, para mim, se compunha de poeta com estatura mediana, cabelos longos, barba descuidada, sorriso farto, voz empostada, sotaque gaúcho e que arranhava uma viola de 12 cordas. Este meu José Régio foi um rapaz que participou na Escola Salesiana do Trabalho, de um encontro nacional de casais, lá pelo início dos anos 80. Evento grande, organizado. Tinha o detalhe comunitário de abrigar os casais de fora, nas casas da periferia. Os visitantes poderiam viver a experiência das baixadas pedreirenses. Embora estivesse na direção do encontro, o rapaz não era casado. Veio como dirigente e animador cultural. Fazia as programações, preenchia os intervalos com dinâmicas participativas que envolviam teatro, música, dança, poesia...
Foi num intervalo desses que ele subiu ao palco e recitou sublimemente o poema “Cântico Negro”. E ele foi tão fervoroso na interpretação dos versos, tão potente na emoção, que nós, na plateia, ficamos paralisados. Em transe com aquela performance (mais tarde, Maria Bethânia provocaria em mim a mesma sensação, ao reproduzir os mesmos versos em uma das faixas do álbum Nossos Momentos).
O gaúcho cravou, naquele instante, o poema mais conhecido de José Régio, no mais profundo, irrigado e fértil solo do meu coração. Dali pra frente o poema não saiu mais de mim. E permanece até hoje, envolvido por aquela atmosfera. O ambiente salesiano, os duros anos de chumbo; a proposta dos movimentos católicos, e mesmo aqueles de casais, tidos e havidos como conservadores, de não ‘irem mais por ali’.
A forma que se construía aquele momento, tinha todos esses ingredientes, inclusive personificaria o poeta português, na figura daquele rapaz que coordenava o encontro, declamava poemas e carregava uma viola de 12 cordas.
Os desencontros foram reparados agora que conheci a verdadeira face de José Régio na internet. Não que isso me importasse. O verso não tem cara.
Participei daquele encontro porque era da comunidade salesiana, me envolvi nas discussões, ajudei da logística, me diverti nas recreações e até a guia turístico me arvorei.
Daquele evento, adotei um poema para toda a vida, me enriqueci e conheci uma parte da igreja que ajudou pacas na redemocratização do Brasil; trago doces lembranças de um cara bacana de barba desarrumada e que, de tão generoso que era, acabou deixando a viola de 12 cordas, de presente, para a nossa turma da Sacramenta.






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