José
Régio e a viola de 12 cordas
A
gente se dá a cada patetice, né. Vergonha não tenho de me declarar desatento
aos fatos mais banais. Por força até de uma impressão antiga, de falsas convicções,
me embrenho nas mancadas, me embolo nas embrenhadas.
Outro
dia, fazendo o resgate do poema mais famoso do escritor português José Régio,
na internet, dei com a imagem de um homem de sobrancelhas largas, lábios finos,
cabelo rés-o-gasgo nas laterais da cabeça e com um voluminho no cocuruto, olhos
escuros expressivos.
Totalmente
diferente de como eu imaginava o poeta.
Parece
estranho o desencontro, até porque, quando estive em Portugal, em 2012, visitei
a casa dele, a praça que leva seu nome, monumentos e placas de homenagens,
distribuídas pelas ruas de Vila do Conde, cidade natal de Régio. Mas, olha,
patetice minha. Não liguei a obra à pessoa. Talvez satisfeito apenas com a
substância dos poemas, me desliguei da figura do poeta.
Mas
há outra explicação para este desprendimento.
Imaginei
sempre o poeta ter os traços, a aparência de uma outra pessoa.
A
idealização de José Régio, para mim, se compunha de poeta com estatura mediana,
cabelos longos, barba descuidada, sorriso farto, voz empostada, sotaque gaúcho
e que arranhava uma viola de 12 cordas. Este meu José Régio foi um rapaz que
participou na Escola Salesiana do Trabalho, de um encontro nacional de casais,
lá pelo início dos anos 80. Evento grande, organizado. Tinha o detalhe
comunitário de abrigar os casais de fora, nas casas da periferia. Os
visitantes poderiam viver a experiência das baixadas pedreirenses. Embora
estivesse na direção do encontro, o rapaz não era casado. Veio como dirigente e
animador cultural. Fazia as programações, preenchia os intervalos com dinâmicas
participativas que envolviam teatro, música, dança, poesia...
Foi
num intervalo desses que ele subiu ao palco e recitou sublimemente o poema
“Cântico Negro”. E ele foi tão fervoroso na interpretação dos versos, tão
potente na emoção, que nós, na plateia, ficamos paralisados. Em transe com
aquela performance (mais tarde, Maria Bethânia provocaria em mim a mesma
sensação, ao reproduzir os mesmos versos em uma das faixas do álbum Nossos
Momentos).
O
gaúcho cravou, naquele instante, o poema mais conhecido de José Régio, no mais
profundo, irrigado e fértil solo do meu coração. Dali pra frente o poema não
saiu mais de mim. E permanece até hoje, envolvido por aquela atmosfera. O ambiente
salesiano, os duros anos de chumbo; a proposta dos movimentos católicos, e
mesmo aqueles de casais, tidos e havidos como conservadores, de não ‘irem mais
por ali’.
A
forma que se construía aquele momento, tinha todos esses ingredientes,
inclusive personificaria o poeta português, na figura daquele rapaz que
coordenava o encontro, declamava poemas e carregava uma viola de 12 cordas.
Os
desencontros foram reparados agora que conheci a verdadeira face de José Régio
na internet. Não que isso me importasse. O verso não tem cara.
Participei
daquele encontro porque era da comunidade salesiana, me envolvi nas discussões,
ajudei da logística, me diverti nas recreações e até a guia turístico me
arvorei.
Daquele
evento, adotei um poema para toda a vida, me enriqueci e conheci uma parte da igreja
que ajudou pacas na redemocratização do Brasil; trago doces lembranças de um
cara bacana de barba desarrumada e que, de tão generoso que era, acabou
deixando a viola de 12 cordas, de presente, para a nossa turma da Sacramenta.
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