domingo, 3 de maio de 2020

crônica da quarentena - o portão


O portão

Há 40 dias, passei por este portão e nunca mais saí.
A minha Pedreira querida tem se mostrado para mim, por este retângulo vertical, durante este tempo.
Tento levar a vida da forma mais equilibrada possível.
Acordo cedo, faço uma hora de exercícios (valeu a pena comprar aquela bicicleta ergométrica de segunda mão e que até então era deveras desprestigiada por mim. Olha que agora, pedalo). Lavo a louça, ajeito uma coisa aqui, outra ali (não faço café. Estou isento dessa missão porque a coletividade desagradou da minha receita). Depois do desjejum, me pego no home office, até umas duas da tarde.
Logo no início do isolamento, pintei parede, fiz uma faxina detalhada na casa, iniciei um pacote de crônicas sobre minha vida em Barcarena que já conta com mais de 50 páginas. Vou tocando, também, a coluna no jornal que neste março, inteirou 14 anos. Gravei músicas, cantei canções com a voz e a finação do coração. Depois a rotina foi se mostrando. Agora, também converso com as flores que vingam no nosso jardim. Mas não é um papo verbal. É um papo visual, porque sei e é fato comprovado, inclusive pela poesia, que as rosas não falam.
Com o passar dos dias, deixei de ver noticiários na TV. Agora, vejo filmes, mina de séries. Tudo de uma vez, tudo pela metade. Acho legal essa embrulhada. Dá uma dinâmica ao dia. Sei das coisas pelos amigos aqui do facebook, que são as pessoas mais legais do mundo. Tenho procurado interagir e ao menor sinal de dificuldade, faço contato, compartilho, peço ajuda. Contribuo de alguma forma. Acredito que sem governo e com um presidente transtornado, só temos uns aos outros. Tenho cuidado. Acompanho a publicação daqueles que caíram e me emociono de felicidade quando os vejo dizendo das melhoras. Sou realista, sei da gravidade do problema que passamos. Faço minha parte. Não saindo de casa, não me expus e também não expus ninguém ao risco.
O momento é de conhecimento, compreensão e cuidados mútuos. Nossa casinha é pequena. E isso nos faz ficar juntos, unidos pela sobrevivência. Todos os dias, contabilizamos mais uma vitória. Eu, minha companheira, minha filha e a gata. Meu menino, movido pelos ardores da paixão, isolou-se lá para as bandas do Bengola. Ele está certo. O amor é sentimento que se interpõe à crise. Fico preocupado com ele, mas apelo para que a serenidade o guie.
Não é fácil manter a cabeça no lugar. Temos que preservar o equilíbrio, exercitar a autoavaliação e não desesperar. A cabeça nos prega peças. Já senti febre, dor de cabeça, dor de testa, dor no joelho, dordolho, aperto no peito, no estômago, uma coceirada na orelha. Às vezes acho que vou tremer. Tudo peças pregadas pelo inconsciente. Rapidola faço uma avaliação, uma contextualização, vejo o que posso fazer para me ajudar (a bicicleta, o exercício físico, o trabalho... arrumo outra parede pra pintar) e tudo passa.
Outras vezes, não são criações do imaginário, são dores que doem de verdade. Quando a gente perde um amigo, um familiar, quando a gente se depara com nossa impotência. Aí eu choro escondido. Depois, fazemos uma reunião no coletivo, avaliamos o quadro e retomamos. Nessas hora, resgato o meu fervor salesiano e rezo para que todos fiquem bem. canto canções do padre Zezinho, aquelas de Maria. Elas adoçam o amargo dos dias.
Não sei quando vou sair por este portão de novo. Sei que nesses dias, e os dias que ainda virão me farão ver muitas coisas desta minha Pedreira velha de guerra, e do mundo, por aquele retângulo vertical. E tenho certeza que serão signos, sinais, que decifrarei para que minha personalidade, meu calibre, meu tino sejam mais humanos, mais afetuosos e solidários.
bença.

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