Riscos
aleatórios e riscos previsíveis
Já
passei uma situação de risco altíssimo certa vez. Sobrevivi graças ao
insuspeito acaso. Em uma missão de mudança de acampamento com o apoio de
helicóptero, por pura lerdeza minha, para apanhar uma cesto de mantimentos,
cortei caminho por baixo da aeronave. Passei exatamente entre a turbina e o
rotor de cauda. Para entender a gravidade da ação, é como se eu me arvorasse
entre a cruz e a espada. Estive em tempo de ser sugado para as altas
temperaturas da turbina ou, do outro lado, ser triturado pelas palhetas do
rotor que fica na rabeira do helicóptero.
Credito
a minha salvação ao acaso porque não fazia a menor noção do risco. Poderia
cambar para um lado, para o outro e por milímetros de deslocamento, ser tragado
à fatalidade. Mas não. Quando cheguei do outro lado, o comandante me cortou e
arou na esculhambação. Perguntou se achava que já vivera o bastante, se eu
estava querendo me suicidar, informou, muito bravo, que um movimento mais
acentuado naquela travessia e eu atravessaria para a cidade do pé junto, e que
isso, e que aquilo, e aquil’outro. Quando tomei ciência do perigo que passei, chega
me deu um passamento.
Fiar
a minha vida entre dois mecanismos dos mais perigosos de um helicóptero foi um
risco aleatório, afinal, desconhecia detalhes daquela máquina.
Em
outros termos, tenho pra mim, que as minhas defesas naturais agiram para me
proteger naquele dia. Meus instintos foram estimulados, meus sensores de
proteção foram ativados. Varei do outro lado íntegro.
Outra
peleja da qual boiei, foi quando tive uma papeira. Caxumba, para uns. Fui bater
na indigência da Santa Casa, aos cuidados da freira, na ala de isolamento.
Naquele tempo não tinha essa possibilidade de saúde universal do SUS não. A
minha valência é que mamãe, por conta de um emprego com carteira assinada, do
qual, inclusive havia saído recentemente, tinha a carteirinha do INPS. A
papeira até que estava controlada, tratada com uma melecagem à base de boneca
de anil. O que se deu, é que raquítico, subnutrido, carente de tudo quanto é
vitamina, proteína, sais minerais e ânimo, não resisti às complicações.
Baldeava o pouco que comia e a desidratação esteve um isso para me levar.
Quando mamãe me viu desfalecendo, chamou o carro e nos abalamos para o atendimento
infantil do INAMPS que ficava ali em Nazaré, perto da Doutor Moraes. O
diagnóstico que aceito até hoje foi “complicações da papeira”. Uma ambulância
me levou mais que depressa para a Santa Casa. Lá era na base da penicilina. Quando
a enfermeira aplicava a bicha no glúteo, naquele tempo sem anestésico nem nada
e com uma agulha de umas 10 polegadas de diâmetro, chega eu rabiava. Chega a
lágrima escorria doz’oío. No isolamento, apenas a presença da freira para
companhia. Visita era muito pouquinha. Para a galera da minha geração,
infelizmente, por causa das condições sanitárias, sociais, e pelo número sempre
grande de membros das famílias, perder a vida para a desidratação provocada por
complicações de qualquer doença oportunista era um risco previsível. Passei
tempos difíceis naquela enfermaria. Eu, um garoto de não mais de dez anos, vi
um homem agonizar até a morte, na cama ao meu lado. Da papeira e da
desidratação, saí curado de lá. Das lembranças de sobrevivente, não.
Esses
dias, vivendo os horrores da pandemia, me vi admitindo este nosso pendor a ser
sobrevivente, esta nossa sina de superar riscos, tanto aleatórios, quanto
previsíveis.
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