sexta-feira, 5 de junho de 2020

crônica da semana- as cores da pandemia


O traço e o jeito da pandemia
As formas, as linhas e as cores nunca foram o meu forte. Em uma época bem remota, eu acreaninho recém-instalado em Belém, até que dei uns passinhos no rumo de conhecer as figuras geométricas clássicas. Meu tio utilizava a tampa de caixas de sapatos para me dar as lições. Desenhava no papelão e eu identificava o quadrado, o retângulo, o triângulo, o círculo.
Mais com pouco, já fazendo o Primário na Aparecida, me deparei com questões de ligar as figuras semelhantes que estavam desenhadas dentro de um conjunto. Durante a prova me embananei e liguei tudo errado. Bolinha eu liguei com quadradinho; trianglinho eu liguei com bolinha.
O certo é que conhecer as figuras é uma coisa. Estabelecer relações formais entre elas são outros quinhentos. E este foi o desafio que tive que encarar quando entrei na Escola Técnica. A Escola, antevendo as dificuldades dos novos alunos, ofertava um curso rápido de adaptação à disciplina. Era o famoso curso de nivelamento em Desenho. Durante as aulas, conhecíamos o material que usaríamos. Alguns eram novidades, como a régua tê e o escalímetro de precisão. Quando o semestre começou de vera, tive a oportunidade de ter algumas aulas ministradas pelo grande professor Milton Monte. Os primeiros dias foram maneiros. Retas, semirretas, ângulos, polígonos. Figuras planas. Com o tempo a coisa foi aquecendo e eu fui me aperreando. Até que chegou a vez da professora Maria das Neves. Uma professora excelente, mas responsável por uma das matérias mais difíceis que encontrei na vida. Teríamos que desenhar figuras em perspectiva. Meu pai do céu, aquilo era o meu calvário. Um sofrimento. Peleja igual àquela do primário, quando liguei as figuras erradas dos conjuntos. Pirava nas missões.
Vale dizer que a expressão da realidade, através de uma imagem, se deu, em princípio, num contexto plano. Quem nunca viu o desenho de um egípcio sempre de lado ou mesmo, quem não teve contato com obras da Idade Média retratando anjos e santos de semblantes meio achatados? A representação da realidade aconteceu por muito tempo em duas dimensões. Posso até inferir que entre os perfis chapados dos egípcios até o profundo sorriso de Monalisa, pelo menos mil e quinhentos anos se passaram. Os limites da compreensão humana abonam os aperreios que eu passava nas aulas de Maria das Neves. Não foi fácil para a humanidade reproduzir a realidade em desenhos ou em pinturas, com a profundidade que nossos olhos a percebem.
O que resultou é que, na prova final, tive que me acudir com o amigo Armindo Sérgio, o Pardal, para me livrar de uma incômoda dependência.
Imitar o real, em profundidade e cores, também não é a essência da arte. Por vezes a apreensão se dá pela impressão. Desde as aulas do professor Milton Monte, venho aprendendo isso. E apliquei este meu aprendizado no muro aqui de casa, durante este período de pandemia.
Risquei minha impressão de um bairro do Rio de Janeiro chamado Taquara (e este é o título da minha obra). Ocupa toda a parte superior do muro e em uma largura próxima a dois metros. Deu um trabalhão. Exigiu firmeza nas mãos e preparo físico. Esteticamente, se compõe em mosaicos que refletem os 1500 anos de evolução da pintura. Desenhos planos intercalados por paisagens em perspectiva. E muita cor. A minha Taquara é colorida. Porque em tempos de isolamento, tão importante quanto o ponto de fuga é o otimismo das cores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário