domingo, 1 de dezembro de 2019

Cr^nica da semana- a grande perca


A grande perca (vai um cafèzinho aí?)
Nos meus tempos de estudante, participei de um projeto em Barcarena chamado “Revisão Solidária”. A idéia era juntar estudantes universitários em jornadas de apoio aos alunos da rede pública que se preparavam para o vestibular. Cada um doava um pouco de si ao projeto. Com as bases do meu curso de Geologia, podia contribuir em Matemática, Geografia, um pouquinho de Ecologia... Mas, como na época já tinha a coluna no jornal, a coordenação sempre me escalava para os horários de Literatura e Língua Portuguesa. Tenho plena certeza que era deslocado, também, porque tínhamos uma galera feríssima nas outras áreas do conhecimento, e, penso que antes bem mais que hoje, ansiosa por partilhar saberes.
Fazia das minhas. Costumava valorizar a leitura. Levava textos para as aulas, líamos em voz alta. Interpretávamos. Deixava como dever de casa, uma redação. E porque sou gramatiqueiro, muitas vezes tratava das formalidades da Língua. Mostrava o jeito de usar as ferramentas da gramática, para construir meus textos. Inventei o sacolão. Fazia menção, descia das costas o sacolão pesado e revelava que ali, estavam os elementos que organizariam minha escrita. E de lá eu tirava os tijolos etimológicos, sintáticos, as análises, as constituições frasais simples, os apoios semânticos.
Citava os gregos como fabricantes daquele sacolão. Como intuíram um grupo de palavras para dar nomes às coisas. Os substantivos. E depois de as coisas nomeadas e identificadas, para que não fossem, umas iguais às outras, criaram os adjetivos. E quantas eram? Para contá-las, os gregos criaram os numerais. Quando quiseram dar movimento, dar vida aos seres e às coisas, o gregos criaram os verbos. E as partes do discurso iam saindo do sacolão, compondo pensamentos, estabelecendo a compreensão.
Foi um período interessante. Muito produtivo. Já desconfiava, mas nesse tempo, me certifiquei da dificuldade enorme que os estudantes têm na leitura. Quando, no início das aulas, lemos pela primeira vez juntos, quase tive uma síncope. Por outro lado, quando fizemos a última leitura do ano, uma lágrima de felicidade brotou dos meus olhos. Tinha conquistado uma vitória.
E são as vitórias miúdas que me levam a relatar o caso do sacolão. Porque em outra ocasião, quando da minha primeira vez na Universidade, fazia o curso de Geografia e meu professor de Português era o Pedrinho. Já maduro, magrinho, delicado no falar e no andar. Gramatiqueiro. Marcou minha trajetória, me apresentando o acento grave nas sílabas subtônicas (que já havia caído no Acordo ortográfico de 1971). Avalie só hoje a gente parando esta prosa para tomar um cafèzinho. No entanto, o que ficou mesmo no cocuruto foi a aula sobre as formas nominais dos verbos.
Os verbos são palavras retiradas do sacolão que indicam ação, estado ou fenômeno da natureza (ah, os gregos!). Quando não estão inseridos neste cenário, não são verbos. Assumem o papel de outro elemento do sacolão.
Pirei o cabeção com aquela aula do Pedrinho. Arrumei vários macetes para entender melhor aquele tema. Um deles é procurar sempre conjugar a forma ‘verbal’. Por exemplo, articular o verbo ‘perder’ na base do eu, tu ele, nós, vós, eles.
São essas pequenas reflexões, e essas buscas no sacolão da memória, que me fazem crer que não seria grande perda de tempo, uma parada para o cafèzinho.

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