Qual
a tua graça?
Arrumava
a quadra de vôlei bem confronte a minha sala. Eu me desconcentrava todo quando
ela rodava e chegava na saída de rede.Vibrava nos relances que aquela visão
mínima me proporcionava. Preparando o salto, ajustando a passada, elevando-se
para a cortada. Não via o desfecho da jogada, mas se ela não saía do meu estreito
campo de visão, era sucesso na certa. Um olho na aula da professora de Ciências,
e o outro, mirando a fresta que capturava os lances do jogo de vôlei, na aula das
meninas.
Era
bem maior e mais robusta que a grande maioria de nós. Levava certa vantagem
quando estava na rede. A imponência se realizava na harmonia perfeita entre o short
vermelho e a camiseta com o emblema do Estado, que compunham o uniforme de
Educação Física. Eu dava no ombro dela.
Certa
vez, eu estava zanzando pelos corredores, sem aula porque o professor estava
doente. Enquanto não batia a campa do próximo horário, fui apreciar o jogo das
meninas. Ela estava lá.
Estudava
à tarde. Era da oitava B. Tinha Educação Física às terças e Quintas, mas como
esbanjava estilo e liderança, foi recrutada para auxiliar nos outros dias da
semana. Antes das nove, armava a rede. Nessa aula vaga, nos topamos. Após umas
das jogadas bem sucedidas, ela caminhou para fora da área demarcada com um fio,
que definia a quadra de jogo, e me pediu água. Peguei meu caneco da merenda que
tinha um azul já descolorindo, fui até a cantina e voltei devagarinho, me
equilibrando para não derramar uma gota. Na pedida de tempo, ofereci-lhe a
água. Ela bebeu em goles longos e atropelados pela pressa. Ao terminar,
devolveu-me o caneco, agradeceu e perguntou qual era a minha graça. Sorri um riso
nervoso, titubeei. Não respondi. Não sabia o que queria dizer aquilo. Qual era
a minha graça? Que graça? A campa bateu, desviei o olhar para o corredor,
buscando a minha sala e saí com mais de mil tentando formular uma resposta para
aquela pergunta que um copo de água ensejou. Qual era a minha graça?
O
professor sarou e só fui ter um tempo vago naquele horário, apenas lá pelo
final do ano. E nem era tão livre assim. Estava no pendura. Em algumas
matérias, precisava de oito, para passar. Qualquer tempinho era usado para
rever o ponto da aula anterior, fazer cópias, responder questionários. Um
lugarzinho na biblioteca para estudos extras, era disputado. Eu tinha que estar
sempre na biqueira. Sempre na vez. Já havia repetido a sexta, se fico de
segunda época de novo, mamãe ia ralhar de não parar mais. Postava-me, ainda, na
bicora daqueles meninos que sabiam mais, das meninas que tinham um caderno completinho
com a matéria. O tempo deles era o meu tempo. Ficava só na fresta, esperando o
time dela recuperar a vantagem e fazer o rodízio.
Na
minha sala tinha uma menina que se chamava Enedina. Considerava este nome por
demais diferente. A curiosidade pelo nome nos aproximou, partilhávamos preocupações
com as matérias e com outras coisas da vida. Era amiga da garota do vôlei. Fez
o meio campo. Conseguiu um encontro depois da minha aula de Educação Física, de
tarde. Naquele dia descobri que era um moleque que vivia das brincadeiras de
rua, dava meu reino por um jogo de bola e não sabia nem beijar. Ela relevou. Me
deu uma chance. Nos encontraríamos na tertúlia do Bosque, no próximo domingo.
Eu
falei que ia pedir pra mamãe. Ela disse “tá, vou esperar”. E completou: “ah,
minha graça é Irene”.
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