Bota
cor de gelo
Na
minha cabeça, o leito acidentado da Marquês, os barrancos discretos que
ladeavam a rua, o capinzal que num ponto ou noutro nos desviava para pequenas
trilhas, as poças de água formadas por causa do peso dos caminhões de gás e de refrigerante
que se arriscavam a atravessar o trecho, representavam o cenário para as fantasias.
Eu calçava a minha bota cor de gelo e, fazendo a menção der ser o tenente Rip
Masters, revivia as aventuras mais eletrizantes do seriado Rin tin tin, que
passava na sessão vesperal.
Minha
avó ficava piriricas da vida porque eu usava minha bota para essas brincadeiras
de rua. Era a parte que me cabia, no final do ano, e de jeito e maneira tinha a
finalidade de alimentar meus sonhos. Deveria servir unicamente como sapato de
sair para as partes. Ir para a escola, para o arraial, um ou outro festejo de
aniversário...
Vovó,
que ficava com a gente enquanto mamãe trabalhava na panificadora Aveirense, já
havia demonstrado descontentamento com a minha bota cor de gelo. Até com razão.
Nossa rua não tinha asfalto e um calçado clarinho logo logo estaria impregnado
do encardido da piçarra. Agora cabeça de menino lá pensa nisso! O vendedor
mostrou alguns modelos, me agradei mesmo foi daquela bota com uma pequena
fivela no dorso, que fazia um barulhinho metálico discreto quando eu andava. O
encantamento maior, porém, veio pelo discernimento do vendedor que aliado a uma
locução bem postada, transformava uma bota desenxavida de branca, em estilosa bota
cor de gelo. Pirei naquela cor. Diferente de marrom ou vermelha, ou preta ou
bege. Minha bota era de uma cor invulgar. Isso, por si, era fascinante. Um
sonho. Minha avó, logo na primeira chance, espetaria: “ora, sonho; ora, cor de
gelo”.
Os
tempos eram difíceis. O numerário a mais de dezembro servia para prover o ano,
do mais urgente para cada um. Uma roupa nova, sapatos, dinheiro para uma
obturação no molar... tudo contadinho às precisões.
Era
natural o conflito entre as minhas presepadas nas tardes mormacentas de Belém e
as convicções da minha avó. Um embate entre a realidade e a fantasia. Vivia no
mundo da lua, eu. Mas minha avó era centrada no carnê da sociedade e no
contracheque de pensionista, a cada mês mais raquítico de poderes e
possibilidades.
Hoje
percebo que meu herói, o tenente Rip Masters representava um exército que
explorava o trabalho infantil (o garoto Rusty), exterminava ou expulsava a
população indígena do oeste americano. Inocente, achava aquilo bacana que só
(os índios eram os malvados vilões).
Sei
que minha avó não exigia de mim uma leitura crítica das informações que recebia
na sessão da tarde. Tampouco questionava minha postura autoritária quando subia
num monte de barro de construção, imaginando ser uma escarpa do Grand Canyon, e
gritava com nossa cachorra Lolita, querendo porque querendo dela a destreza do
Rin tin tin, e ela, nem seu Souza pra mim. Importava-se vovó, apenas com a
certeza de eu ter o que calçar durante o ano que se iniciava. Daí, os ralhos
por gastar minha bota cor de gelo em brincadeiras de caubói, nas tardes
calorentas de Belém.
Dessas
aventuras, desses conflitos, dessas contradições entre sonhos e fantasias,
tirei o aprendizado de ter sempre algo para calçar a cada início de ano. Para
ir às partes, ao arraial, a uma comemoração de aniversário. E reconsidero
minhas antigas fascinações. Cor de gelo é uma cor que não existe.
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