sábado, 21 de dezembro de 2019

crônica da semana- o natal do seu sandoval


O Natal do Seu Sandoval
Vamos abrandar os espíritos no Natal. Ater-nos ao altruísmo, Quedar-nos às colaborações, largar-nos às ações comunitárias. Mas pelo amor do Jesus Cristinho que nasce e que já na manjedoura, atento a nós está. Nada de sair por aí jogando presentes dentro do rio para fazer as crianças, em mergulhos desesperados, alcançá-los antes que a correnteza os leve, para o finis terrae. Isso já é maldade.
Sugiro: se quiser fazer uma presença com a criançada ribeirinha, articule um contato com a comunidade, com a igreja do local, a escola, a sede social, enfim, procure uma forma de atingir as crianças coletivamente, com respeito e segurança. Procure realizar um evento, mesmo que rápido e discreto, e entregue o seu presente em mãos. Ponha-se téti a téti com as crianças. Dessa forma, além da oferta material, surgirá a oportunidade de oferecer afeto.
Já vi cenas de bondade tão distantes e higienizadas que se aproximaram da mais insidiosa maldade, e que resultaram na conquista dos presentes se dando a base de muitas e infantis braçadas contra a corrente.
É Natal, e, apesar do risco de sentimentos maquiados, não estamos nadando na fartura. Tenho que admitir o valor, por menor que seja, de um gesto concreto. Afinal, tudo está uma carestia só, o cumê diário está pela hora da morte. O que for feito para ajudar de vera, o outro, vá lá que seja, mesmo que realizado só por esses tempos movidos pelo espírito natalino, será de boa acolhida.
Mas criança, sabemos, quer mesmo é brinquedo.
Seu Sandoval entendia desse jeitinho mesmo. Tinha precisões enormes. Pai de quatro. Ganho pouco como empacotador de supermercado. Um pensamento na cabeça, naquela véspera de Natal.
Fazia parte de uma turma de novatos. Atuava na frente dos caixas dividindo o espaço com os boys (como se usava chamar os empacotadores dantes). Não tinha nem dois meses no emprego quando chegou o Natal.
Sabia que Seu Sandoval e outros que estavam chegando, faziam parte de um processo de substituição. Até aqueles dias, os empacotadores eram todos menores. Eu tinha meus doze, treze anos, por aí. Tínhamos carteira assinada, plaquinha de identificação no peito, batíamos cartão e usávamos a bata (vira e veste) azul da empresa. Com as pressões contra o trabalho infantil, aquele era nosso último Natal embalando as compras dos barões, faturando uma gorjeta, merendando pão com fiambre no estacionamento.
Seu Sandoval já contava uma certa idade. Percebia que fazia o mesmo esforço sobre humano que eu para acomodar os paneiros de compras nos carrinhos de entrega. Não corria da missão. Tufava a veia do pescoço, conseguia e com pouco mais voltava contando os trocados da gorjeta.
Naquela noite do dia 24, antes de fechar o supermercado, Seu Sandoval contou o apurado. Pegou uma cestinha e caminhou entre as gôndolas coletando o di cumê para a ceia. Eu fui atrás dele. Incentivei para que levasse também uns brinquedos para as crianças. Ele recontou o apurado. Não dava. Amofinou. Fui até a seção de brinquedos, com minha graninha das gorjetas e quedei-me ao altruísmo. Comprei presentes para mim (porque eu era criança e criança quer mesmo é de brinquedo) e mais quatro brinquedinhos para os filhos do meu colega de trabalho.
Lembro das lágrimas rolando dos olhos do Seu Sandoval, quando o relógio já beirava a meia-noite e a gente caminhava pela Almirante, na esperança de ainda pegar o cristo para a Pedreira. 

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