O
Natal do Seu Sandoval
Vamos
abrandar os espíritos no Natal. Ater-nos ao altruísmo, Quedar-nos às colaborações,
largar-nos às ações comunitárias. Mas pelo amor do Jesus Cristinho que nasce e
que já na manjedoura, atento a nós está. Nada de sair por aí jogando presentes
dentro do rio para fazer as crianças, em mergulhos desesperados, alcançá-los
antes que a correnteza os leve, para o finis
terrae. Isso já é maldade.
Sugiro:
se quiser fazer uma presença com a criançada ribeirinha, articule um contato
com a comunidade, com a igreja do local, a escola, a sede social, enfim,
procure uma forma de atingir as crianças coletivamente, com respeito e
segurança. Procure realizar um evento, mesmo que rápido e discreto, e entregue
o seu presente em mãos. Ponha-se téti a téti com as crianças. Dessa forma, além
da oferta material, surgirá a oportunidade de oferecer afeto.
Já
vi cenas de bondade tão distantes e higienizadas que se aproximaram da mais
insidiosa maldade, e que resultaram na conquista dos presentes se dando a base
de muitas e infantis braçadas contra a corrente.
É
Natal, e, apesar do risco de sentimentos maquiados, não estamos nadando na
fartura. Tenho que admitir o valor, por menor que seja, de um gesto concreto.
Afinal, tudo está uma carestia só, o cumê diário está pela hora da morte. O que
for feito para ajudar de vera, o outro, vá lá que seja, mesmo que realizado só
por esses tempos movidos pelo espírito natalino, será de boa acolhida.
Mas
criança, sabemos, quer mesmo é brinquedo.
Seu
Sandoval entendia desse jeitinho mesmo. Tinha precisões enormes. Pai de quatro.
Ganho pouco como empacotador de supermercado. Um pensamento na cabeça, naquela
véspera de Natal.
Fazia
parte de uma turma de novatos. Atuava na frente dos caixas dividindo o espaço
com os boys (como se usava chamar os empacotadores dantes). Não tinha nem dois
meses no emprego quando chegou o Natal.
Sabia
que Seu Sandoval e outros que estavam chegando, faziam parte de um processo de
substituição. Até aqueles dias, os empacotadores eram todos menores. Eu tinha
meus doze, treze anos, por aí. Tínhamos carteira assinada, plaquinha de
identificação no peito, batíamos cartão e usávamos a bata (vira e veste) azul
da empresa. Com as pressões contra o trabalho infantil, aquele era nosso último
Natal embalando as compras dos barões, faturando uma gorjeta, merendando pão
com fiambre no estacionamento.
Seu
Sandoval já contava uma certa idade. Percebia que fazia o mesmo esforço sobre humano
que eu para acomodar os paneiros de compras nos carrinhos de entrega. Não
corria da missão. Tufava a veia do pescoço, conseguia e com pouco mais voltava
contando os trocados da gorjeta.
Naquela
noite do dia 24, antes de fechar o supermercado, Seu Sandoval contou o apurado.
Pegou uma cestinha e caminhou entre as gôndolas coletando o di cumê para a
ceia. Eu fui atrás dele. Incentivei para que levasse também uns brinquedos para
as crianças. Ele recontou o apurado. Não dava. Amofinou. Fui até a seção de
brinquedos, com minha graninha das gorjetas e quedei-me ao altruísmo. Comprei
presentes para mim (porque eu era criança e criança quer mesmo é de brinquedo)
e mais quatro brinquedinhos para os filhos do meu colega de trabalho.
Lembro
das lágrimas rolando dos olhos do Seu Sandoval, quando o relógio já beirava a
meia-noite e a gente caminhava pela Almirante, na esperança de ainda pegar o
cristo para a Pedreira.
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