Teu nariz é um sucesso
Eu me bato de dobrar e estrebuchar para
achar o sujeito da oração absoluta “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/De
um povo heróico o brado retumbante...”, contida nos versos iniciais do Hino
Nacional. Não superei este desafio da gramática, até hoje, o
que deveras abala o meu viés intelectual, e ataca, severamente, a
minha presumida vaidade. Agora, tirando a erudição, meus débitos com
a sintaxe e, largando crueldades da língua à parte, sei cantar o hino do início
ao fim, sem escorregar um isso. E olha que as chances de um estatelamento, uma
atrapalhação, e uma eventual queda, num momento ou outro da letra, são
pecaditos perdoáveis, já que resultam de estrofes prodigamente ornadas, e de
acompanhamento daqueles fiéis, rés a letra, difícil pacas. Além de patriotismo,
a interação com o Hino Nacional exige boa memória, cadência, licenças métricas,
um apurado senso harmônico e um fervor no estribilho. Tudo isso mais a mão no
peito: a reverência ajuda na concentração.
Cantei hino em todos os estágios da minha
vida estudantil. E não tenho bronca disso. Não só o Nacional, observo. Sou do
tempo em que os hinos do Pará e do Brasil vinham impressos nas capas e
contracapas dos cadernos da Femesc. E a garotada, enfileirada à
distância da mão no ombro, soltava a voz, a cada turno de aula, inclusive o
intermediário, o turno da fome.
Os hinos pátrios são expressões de
compromisso, de carinho, de saudade. Compõem traços da identidade, da cultura.
Simbolizam o solo amado e gentil. Personificam amigos distantes, amigos sumidos
assim. Nos trazem diante dos olhos e do coração, “os verdes mares bravios de
minha terra natal”, mesmo que a gente esteja no ermo mais alto e árido das
montanhas.
Tenho simpatia pelos hinos por indicarem
acima de tudo apego. Nas minhas andanças pelos sertões do Brasil, parando em
várias estâncias, me fiz sempre participar, amar aquele chão. E procurava
crédito no que afirmava, sustentando que (além do título de eleitor; da minha
integração com as iniciativas culturais, sociais políticas...) daquele lugar,
eu sabia até o hino. E verdade era. Até um dia desses, cantarolava sem falhas
os hinos de Rondônia, do Amapá, do Acre. A memória, nos últimos anos tem me
traído, mas se arriscar, desenrolo bacana, ainda, o hino da Escola Estadual que
me deu o primeiro grau, de quinta a oitava série, completinho.
Prezo esta afeição pela simbologia que os
hinos carregam em si, mas acredito que estes sinais só podem ser pressentidos e
metabolizados dentro da gente, se houver a animação voluntária. Nada a pulso
presta. Na minha Escola Estadual, antes de entoarmos o hino, a antipatia
provocava diversas reações. Enfileirados à distância da mão no ombro da próxima
pessoa à frente, não era fácil manter a ordem. Valdeci, o que mais
antipatizava, não se aquietava. Mudava de lugar a toda hora. Cobria um, cobria
outra, saía de forma. Quando avistava Enedina, aquecia. Ignorava limites.
Quantas vezes o vi adiantar-se até a bandeira, antes do hasteamento, abrir-lhe
ao todo, ler a frase em voz alta, para toda a turma. “Ordem e Progresso”. A
seguir dirigia-se faceiro até Enedina e segredava-lhe ao ouvido... “teu nariz é
um sucesso”. Após a rima sumia no fim da fila. Concentrado, esperava o
estribilho do hino, que era a única parte que sabia de cor.
Bacana legal.
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