As
pedras se encontram
A
sala escura do Cine Paraíso, na Pedreira, rendeu muita lembrança boa, além dos
filmes propriamente ditos. Houve um tempo em que o intervalo entre as sessões
era preenchido por produções variadas. A mais famosa delas era o Canal 100.
Constava da narrativa, em linguagem cinematográfica, de uma partida de futebol
e também de todo o cenário agregado. Eram famosas as imagens da torcida na geral
e o detalhe, em plano fechado, das melhores jogadas, dos dribles mais
elaborados. Ou de grosseiros erros de cálculo em chutes que arrancavam grama do
campo.
Pelo
comum, deveria trazer vibrando dentro de mim, uma daquelas jogadas filmadas
pelo Canal 100, já que era moleque encegueirado por futebol. Qual o quê. O que
batuca há tempos no meu coração é um documentário sobre Ismael Silva.
Exibido
entre uma sessão e outra, concentrava a história do Samba na trajetória do
compositor. A dinâmica do documentário era marcada pela repetição periódica do
refrão daquele que foi o maior sucesso de Ismael, o samba “Se você jurar”. O
roteiro apresentava uma entrevista, e cortava para o refrão. Uma reportagem com
imagens do Rio antigo, e novamente o refrão. Artistas famosos, grupos musicais
de primeira apareciam aqui e ali, interpretando a música que consagrou o bairro
do Estácio como o berço do Samba.
Obviamente
que aquela sacrossanta repetição se instalou na minha mente. O fato é que o Samba
era dotado de um refrão forte, a primeira e a segunda parte regidas por acordes
preparatórios (e hoje, ao dedilhar no meu violão, entendo o quanto esta
construção melódica foi importante para a história da música brasileira).
As
pedras rolaram. Acabada a sessão no Cine Paraíso, naquela década de setenta de
hegemonia musical bem diferente da sonoridade do Samba, a música de Ismael foi
se diluindo na minha lembrança. De tal forma que, gravei o refrão, mas esqueci
o andamento da primeira e da segunda parte. O que resultou no absurdo d’eu
inventar uma melodia diferente daquela do Ismael e assim, durante anos, cantar
“Se você jurar”, do meu jeito quadrado.
As
pedras, por fim, acabam se encontrando.
Desde
2016, tenho me envolvido com a história do Samba. Provi minha biblioteca de
obras retratando os primeiros batuques. A partir do Romance de Paulo Lins
(“Desde que o Samba é Samba”, 2012), aticei minha curiosidade. Do Romance parti
para a severidade histórica expressa nos textos de Nei Lopes, Luiz Antônio
Simas, Lira Neto. E em cada leitura, em cada pesquisa, as pedras se encontrando.
Ismael Silva aparecendo como personagem decisivo. A linguagem melódica se
movendo. O batuque se mostrando. Bumbum Paticumbum Prugurundum.
Sou
um tocador limitado. As margens do meu talento no violão são tão próximas que
não saio do quadrado. Chega a ser um vício. O quadrado é uma sequência de notas
que forma um ciclo. A música começa com uma nota, dá uma voltinha pelo refrão e
termina na mesma nota. Tenho uma queda para o quadrado e isso torna a minha
pegada um tanto monótona. Fazer o quê. O meu consolo é que o talento dos outros
me anima. Neste reencontro com “Se você jurar”, baixei uma cola da internet,
relembrei a melodia e me arrisquei tocar. A música começa pelo refrão. Quando
dei andamento ao samba e saí do quadrado, o zóio marejou. Chamei meu filho e
falei: olha isso, cara!
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