sábado, 9 de março de 2019

crônica da semana - as pedras do samba


As pedras se encontram
A sala escura do Cine Paraíso, na Pedreira, rendeu muita lembrança boa, além dos filmes propriamente ditos. Houve um tempo em que o intervalo entre as sessões era preenchido por produções variadas. A mais famosa delas era o Canal 100. Constava da narrativa, em linguagem cinematográfica, de uma partida de futebol e também de todo o cenário agregado. Eram famosas as imagens da torcida na geral e o detalhe, em plano fechado, das melhores jogadas, dos dribles mais elaborados. Ou de grosseiros erros de cálculo em chutes que arrancavam grama do campo.
Pelo comum, deveria trazer vibrando dentro de mim, uma daquelas jogadas filmadas pelo Canal 100, já que era moleque encegueirado por futebol. Qual o quê. O que batuca há tempos no meu coração é um documentário sobre Ismael Silva.
Exibido entre uma sessão e outra, concentrava a história do Samba na trajetória do compositor. A dinâmica do documentário era marcada pela repetição periódica do refrão daquele que foi o maior sucesso de Ismael, o samba “Se você jurar”. O roteiro apresentava uma entrevista, e cortava para o refrão. Uma reportagem com imagens do Rio antigo, e novamente o refrão. Artistas famosos, grupos musicais de primeira apareciam aqui e ali, interpretando a música que consagrou o bairro do Estácio como o berço do Samba.
Obviamente que aquela sacrossanta repetição se instalou na minha mente. O fato é que o Samba era dotado de um refrão forte, a primeira e a segunda parte regidas por acordes preparatórios (e hoje, ao dedilhar no meu violão, entendo o quanto esta construção melódica foi importante para a história da música brasileira).
As pedras rolaram. Acabada a sessão no Cine Paraíso, naquela década de setenta de hegemonia musical bem diferente da sonoridade do Samba, a música de Ismael foi se diluindo na minha lembrança. De tal forma que, gravei o refrão, mas esqueci o andamento da primeira e da segunda parte. O que resultou no absurdo d’eu inventar uma melodia diferente daquela do Ismael e assim, durante anos, cantar “Se você jurar”, do meu jeito quadrado.
As pedras, por fim, acabam se encontrando.
Desde 2016, tenho me envolvido com a história do Samba. Provi minha biblioteca de obras retratando os primeiros batuques. A partir do Romance de Paulo Lins (“Desde que o Samba é Samba”, 2012), aticei minha curiosidade. Do Romance parti para a severidade histórica expressa nos textos de Nei Lopes, Luiz Antônio Simas, Lira Neto. E em cada leitura, em cada pesquisa, as pedras se encontrando. Ismael Silva aparecendo como personagem decisivo. A linguagem melódica se movendo. O batuque se mostrando. Bumbum Paticumbum Prugurundum.
Sou um tocador limitado. As margens do meu talento no violão são tão próximas que não saio do quadrado. Chega a ser um vício. O quadrado é uma sequência de notas que forma um ciclo. A música começa com uma nota, dá uma voltinha pelo refrão e termina na mesma nota. Tenho uma queda para o quadrado e isso torna a minha pegada um tanto monótona. Fazer o quê. O meu consolo é que o talento dos outros me anima. Neste reencontro com “Se você jurar”, baixei uma cola da internet, relembrei a melodia e me arrisquei tocar. A música começa pelo refrão. Quando dei andamento ao samba e saí do quadrado, o zóio marejou. Chamei meu filho e falei: olha isso, cara!


Nenhum comentário:

Postar um comentário