A
matrona do Benguí
A
cena se encaixaria, de boa, num épico amazônico daqueles cheios de símbolos,
quimeras, ações e lições.
A
carrocinha irrompendo da portaria do condomínio localizado à entrada do Benguí.
O burrinho concentrado no trajeto, o carroceiro cuidadoso, a carroça preenchida
com os poucos teres e haveres. Ao centro, sobre um tamborete, abrigando-se do
sol embaixo de uma pequena sombrinha, a nova inquilina. Após ganhar a rua
principal do conjunto, um cortejo rapidamente se formou atrás do coche, com a
molecada, na mais frouxa algazarra. Pilheriavam o ato cantando versos antigos
de uma cantiga de roda: “a carrocinha pegou três cachorros de uma vez...”. E
foram nesta tagarelice até que a modesta carruagem chegou ao bloco de destino.
A nova inquilina desceu, localizou o apartamento que iria morar e o transporte
dos pertences se iniciou. Com a barriga por acolá, já no oitavo mês de
gravidez, contaria somente com a ajuda do senhorzinho carroceiro. O ânimo da
garotada, mesmo percebendo ser a carga, pesada demais somente para um homem,
não resultou em ajuda alguma. Era pouca a bagagem. O fogão era o artigo mais
robusto. No mais, caixas, sacolas, uma estante de ferro, a sapateira, a rede, o
rádio. Encerrada a peleja o carroceiro foi dispensado e tocou o carro de volta.
A molecada atrás, lógico, na escolta até a portaria. Repetindo freneticamente a
cantiga: “a carrocinha pegou três cachorros de uma vez”.
Qual
o sentido dessas coisas? O que somos além dos rótulos? Das aparências?
Menti
para vocês, lá em cima, quando disse que era um burrinho que puxava a carroça.
A matrona jamais permitiria tamanha judiação.
Já pensou esta puxada, da Pedreira até os arredores do Mangueirão? É uma
jornada desgastante até para quem vai de ônibus ou de carro, avalie para quem
ganha a vida na base da força, para quem encara a lida bruta debaixo do sol de
rachar. Não era uma carroça movida à tração animal. Era um trator que arrastava
a carretinha pelos estirões da cidade.
Inventei
que era um burrinho só para vitaminar a idéia de uma aventura épica, para soprar
um ar campesino ao derredor da matrona, para prover de heroísmo as aparências e
as irracionais eternidades.
O
tratorzinho compunha uma frota comunitária comandada por um aspirante a
político. Atendia às circunstâncias. Recolhia o lixo reciclável, carregava
aterro, material de construção, levava as crianças para as aulas de
alfabetização no Josino Viana. Tudo de graça, quer dizer, com aquelas intenções
oblíquas outras latejando. O operador do trator, que era do tipo agrícola,
daqueles que têm dois pneuzões traseiros e dois dianteiros mais gitinhos assim,
era conhecido da família. Foi só fazer a menção da necessidade de um veículo
para a mudança, que ele, na hora, topou.
O
que se torna e o que se deixa é que não se pode ser espontâneo. A amada
matrona, não pode arrumar camaradagem, ter uma bagagem franciscana, combinar a
mudança, subir na carroça e, sem a menor cerimônia, comedida e humildemente,
cruzar a cidade debaixo da sombra mínima, debaixo de uma sombrinha, até a
entrada do Benguí, que aparece logo uma turma atentada para avacalhar.
Qual
o sentido dessas coisas? O que somos além dos rótulos? Das aparências?
Tralalá
que gente é essa? Tralalá que gente má.
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