sábado, 16 de março de 2019

crônica da semana - a matrona do benguí


A matrona do Benguí
A cena se encaixaria, de boa, num épico amazônico daqueles cheios de símbolos, quimeras, ações e lições.
A carrocinha irrompendo da portaria do condomínio localizado à entrada do Benguí. O burrinho concentrado no trajeto, o carroceiro cuidadoso, a carroça preenchida com os poucos teres e haveres. Ao centro, sobre um tamborete, abrigando-se do sol embaixo de uma pequena sombrinha, a nova inquilina. Após ganhar a rua principal do conjunto, um cortejo rapidamente se formou atrás do coche, com a molecada, na mais frouxa algazarra. Pilheriavam o ato cantando versos antigos de uma cantiga de roda: “a carrocinha pegou três cachorros de uma vez...”. E foram nesta tagarelice até que a modesta carruagem chegou ao bloco de destino. A nova inquilina desceu, localizou o apartamento que iria morar e o transporte dos pertences se iniciou. Com a barriga por acolá, já no oitavo mês de gravidez, contaria somente com a ajuda do senhorzinho carroceiro. O ânimo da garotada, mesmo percebendo ser a carga, pesada demais somente para um homem, não resultou em ajuda alguma. Era pouca a bagagem. O fogão era o artigo mais robusto. No mais, caixas, sacolas, uma estante de ferro, a sapateira, a rede, o rádio. Encerrada a peleja o carroceiro foi dispensado e tocou o carro de volta. A molecada atrás, lógico, na escolta até a portaria. Repetindo freneticamente a cantiga: “a carrocinha pegou três cachorros de uma vez”.
Qual o sentido dessas coisas? O que somos além dos rótulos? Das aparências?
Menti para vocês, lá em cima, quando disse que era um burrinho que puxava a carroça. A matrona jamais permitiria tamanha judiação.  Já pensou esta puxada, da Pedreira até os arredores do Mangueirão? É uma jornada desgastante até para quem vai de ônibus ou de carro, avalie para quem ganha a vida na base da força, para quem encara a lida bruta debaixo do sol de rachar. Não era uma carroça movida à tração animal. Era um trator que arrastava a carretinha pelos estirões da cidade.
Inventei que era um burrinho só para vitaminar a idéia de uma aventura épica, para soprar um ar campesino ao derredor da matrona, para prover de heroísmo as aparências e as irracionais eternidades.
O tratorzinho compunha uma frota comunitária comandada por um aspirante a político. Atendia às circunstâncias. Recolhia o lixo reciclável, carregava aterro, material de construção, levava as crianças para as aulas de alfabetização no Josino Viana. Tudo de graça, quer dizer, com aquelas intenções oblíquas outras latejando. O operador do trator, que era do tipo agrícola, daqueles que têm dois pneuzões traseiros e dois dianteiros mais gitinhos assim, era conhecido da família. Foi só fazer a menção da necessidade de um veículo para a mudança, que ele, na hora, topou.
O que se torna e o que se deixa é que não se pode ser espontâneo. A amada matrona, não pode arrumar camaradagem, ter uma bagagem franciscana, combinar a mudança, subir na carroça e, sem a menor cerimônia, comedida e humildemente, cruzar a cidade debaixo da sombra mínima, debaixo de uma sombrinha, até a entrada do Benguí, que aparece logo uma turma atentada para avacalhar.
Qual o sentido dessas coisas? O que somos além dos rótulos? Das aparências?
Tralalá que gente é essa? Tralalá que gente má.


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