sábado, 30 de março de 2019

crônica da semana - aos mestres com carinho


Aos mestres e às mestras (com carinho)
Ocorreu desse jeitinho: o livro do semestre era “O Pirotécnico Zacarias”, de Murilo Rubião. O trabalho pedia que comentássemos um dos contos do livro. Escrevi quase outro conto sobre “Os Dragões”, de tão entusiasmado que fiquei pelo estilo do escritor. Alfredinho corrigiu e elogiou meu texto nas outras turmas que ele tinha, de forma tal, que quando foi entregar a nota, todos sabíamos da opinião dele. Uma pessoa doce, justa que era, professor Alfredo Oliveira informou que um aluno perdera dois décimos no trabalho, mas estava ali a pedir autorização da turma para que arredondasse para dez a nota. A turma, conhecedora dos fatos, em uníssona galhofa sentenciou: “nãooooo!”...
Estudar durante o regime militar não era fácil. Dos limites da Educação básica, até o Ensino superior, a caminhada era, quase que literalmente minada. Marcação cerrada do sistema, repressão, dispersão de idéias e amizades. Cooptação de professores, pressão por todos os lados.
A valência é que, enquanto um grupo de professores nos cobrava atitudes marciais e posturas submissas, uma outra fração, de inspiração libertária, postou-se no front e resistiu empunhando a arma do conhecimento. O primeiro impacto, a radiação primitiva emanada por este ponto quente dos saberes, eu senti vindos de uma professora extremamente vigorosa. Era o reverso da senhorinha de Educação para o Lar. Aquela que usava uma rede para segurar o cocó do cabelo.
Ao contrário das mestras da época, era bem novinha, tinha cabelos largados, sem cocó e se vestia descontraidamente. De prima, representava uma ofensa ao regime. Franzina, quando iniciava a aula, virava uma leoa. Parece que empregava toda a sua energia na tarefa de nos armar de conhecimento. Trago comigo a agudeza, a contundência com que articulava a lição do dia. “Locução”. “Locução verbal”. E expunha aquele regra com uma voz quase adolescente, mas com a indicação madura de que algum dia nos imporíamos ao sistema pela eficaz articulação dos verbos (anos mais tarde, representando minha categoria profissional diante de engalanados executivos patronais, e que se diziam controladores de nossos destinos, revisitei a mensagem da minha professora afirmando que através do conhecimento, não nos dobraríamos diante de ninguém. Travamos grandes embates, eu e os executivos. Pisar em mim, como intentaram, não pisaram. Os confrontos foram pau a pau. Ganhei uma ligeira vantagem, porém,  quando descobri que não sabiam o que era uma ‘locução verbal’).
A marca mais profunda de resistência que trago, dos anos de chumbo, me vem também da palavra. E me foi cravada pelo meu professor Alfredo, na Escola Técnica.
Ele foi meu agente libertador. Creu em mim. Validou meu verbo. Carimbou minha escrita.
Com o peso diário de pertencer a uma minoria perseguida, Alfredinho, como nos permitíamos tratar, foi um revolucionário. E a mim, possibilitou um futuro que me faz ocupar esta página há treze anos...
Após o bandalho desconcerto do ‘nãoooo!”, todos concordaram e Alfredinho desenhou o dez, bem desenhadinho na capa do meu trabalho. De lá pra cá, não parei mais de escrever.
A professora que não usava cocó e Alfredinho, que assumia os reveses de ser minoria, foram minha valência.
Neste fim de março, aos mestres e mestras, minha homenagem. Com carinho.

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