sábado, 6 de abril de 2019

crônica da semana- teve uma hora que... mãe


Teve uma hora que...
Um coração solitário este meu. Meio índio, meio onça, um isso de gemido, um aquilo de esturro, um esgar desconfiado sempre escapando. Máquina enzimática, hormonal, liquefazendo o cotidiano, metabolizando versos e prosas.
Comportado em engrenagem fibrocartilaginosaóssea tão cheia de ardores e repentes que:
Teve uma hora que lembrei de minha mãe
Foi no instante em que apareceu um ser humano recortado em tomos translúcidos, chega deu pra ver direitinho o sexo, o jeito e o futuro dele. Nas partes ósseas, dava pra enxergar o tutaninho encravado nos núcleos rosados.
A mim, ficou clara a trajetória daquele indivíduo, traçada sobre um futuro retorcido. Em alguns pontos, esmigalhado. Em outros, íntegro e lúcido. Como é a vida mesmo.
Tinha batuque e silêncio naquele porvir. Sobras de pecado, detritos harmônicos, secura e distância nas possibilidades vindouras. Mas não eram escolhas. Eram imbricações. Uns destinos sobre outros em contatos forçados. Lá ao longe, uma canção antiga. E ganhando o infinito, pobre de razões, delgadas fatias destacadas do ser humano.
Foi nessa hora que lembrei de minha mãe.
Antes recolhido, que solitário, este meu coração. Meio alado, meio amordaçado. Um isso de filhinho, um outro tanto de cristão. Máquina assintomática, cordial. Benzendo o ilusório, rascunhando insignificantes questões. Em torno do éter almiscarado.
(E quando lembrei de minha mãe, reconheci a música como a arte animadora de nossas vidas. Em casa sempre tinha música. De manhãzinha, um radinho era acomodado sobre a pernamanca que atracava a parede da cozinha. A rosquinha plástica de ligar fazia aquele barulhinho enroscado, a freqüência era captada e as ondas traziam para dentro de casa as canções mais belas.
Noutras vezes, era nas altas horas da noite. O radinho ficava apoiado no muro que limitava a vila que a gente morava. Meu horário de trabalho era até 11 da noite. Pegava o cristo do Sacramenta-Humaitá ou Jurunas-Conceição. Mamãe à entrada da vila, não se aquietava enquanto eu não aparecia lá no início da Mauriti.
Tinha 12 anos e uma rotina árdua. Em casa, ia tomar banho, procurar o que comer, passar um pedacinho pra fazer a digestão, depois é que ia me aquietar para um sono reparador. E tão prudente e necessário, que quem disse que eu acordava na hora de ir para a escola. Saía de casa aos empurrões. A cara toda amarrotada, olhos vermelhos e remelentos. Minha escola era prum lado, eu pegava o ônibus pro outro. Sentava lá atrás e dormia. A gazeta dava a conta certa de duas voltas no Pedreira Lomas. Voltava pra casa sempre mais cedo do que o esperado. Inventava uma desculpa, ficava por ali fazendo menções, almoçava e ia trabalhar. De noitona, tudo de novo. Mamãe rente o muro, o radinho no programa de seresta do Joel Pereira, o cristo, e eu varando na ponta da rua. Fiquei reprovado por faltas, esse ano).
Em verdade, retorcido, esmigalhado, é este meu coração. Meio alheio, virtualmente atento. Um isso de indeciso, outro tanto de pretensa exatidão. Manufatura de gente, germe se multiplicando no vão da vida.
Tutaninhos róseos, pedaços de gente bandada encontrei pelo caminho. Tão cheios de amores, sinceridades e canções que...
Teve uma hora que lembrei de minha mãe que não se aquietava enquanto eu não despontasse na Mauriti.

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