Teve
uma hora que...
Um
coração solitário este meu. Meio índio, meio onça, um isso de gemido, um aquilo
de esturro, um esgar desconfiado sempre escapando. Máquina enzimática,
hormonal, liquefazendo o cotidiano, metabolizando versos e prosas.
Comportado
em engrenagem fibrocartilaginosaóssea tão cheia de ardores e repentes que:
Teve
uma hora que lembrei de minha mãe
Foi
no instante em que apareceu um ser humano recortado em tomos translúcidos,
chega deu pra ver direitinho o sexo, o jeito e o futuro dele. Nas partes
ósseas, dava pra enxergar o tutaninho encravado nos núcleos rosados.
A
mim, ficou clara a trajetória daquele indivíduo, traçada sobre um futuro
retorcido. Em alguns pontos, esmigalhado. Em outros, íntegro e lúcido. Como é a
vida mesmo.
Tinha
batuque e silêncio naquele porvir. Sobras de pecado, detritos harmônicos,
secura e distância nas possibilidades vindouras. Mas não eram escolhas. Eram
imbricações. Uns destinos sobre outros em contatos forçados. Lá ao longe, uma
canção antiga. E ganhando o infinito, pobre de razões, delgadas fatias
destacadas do ser humano.
Foi
nessa hora que lembrei de minha mãe.
Antes
recolhido, que solitário, este meu coração. Meio alado, meio amordaçado. Um
isso de filhinho, um outro tanto de cristão. Máquina assintomática, cordial.
Benzendo o ilusório, rascunhando insignificantes questões. Em torno do éter
almiscarado.
(E
quando lembrei de minha mãe, reconheci a música como a arte animadora de nossas
vidas. Em casa sempre tinha música. De manhãzinha, um radinho era acomodado
sobre a pernamanca que atracava a parede da cozinha. A rosquinha plástica de
ligar fazia aquele barulhinho enroscado, a freqüência era captada e as ondas
traziam para dentro de casa as canções mais belas.
Noutras
vezes, era nas altas horas da noite. O radinho ficava apoiado no muro que
limitava a vila que a gente morava. Meu horário de trabalho era até 11 da
noite. Pegava o cristo do Sacramenta-Humaitá ou Jurunas-Conceição. Mamãe à
entrada da vila, não se aquietava enquanto eu não aparecia lá no início da
Mauriti.
Tinha
12 anos e uma rotina árdua. Em casa, ia tomar banho, procurar o que comer,
passar um pedacinho pra fazer a digestão, depois é que ia me aquietar para um
sono reparador. E tão prudente e necessário, que quem disse que eu acordava na
hora de ir para a escola. Saía de casa aos empurrões. A cara toda amarrotada, olhos
vermelhos e remelentos. Minha escola era prum lado, eu pegava o ônibus pro
outro. Sentava lá atrás e dormia. A gazeta dava a conta certa de duas voltas no
Pedreira Lomas. Voltava pra casa sempre mais cedo do que o esperado. Inventava
uma desculpa, ficava por ali fazendo menções, almoçava e ia trabalhar. De
noitona, tudo de novo. Mamãe rente o muro, o radinho no programa de seresta do
Joel Pereira, o cristo, e eu varando na ponta da rua. Fiquei reprovado por
faltas, esse ano).
Em
verdade, retorcido, esmigalhado, é este meu coração. Meio alheio, virtualmente
atento. Um isso de indeciso, outro tanto de pretensa exatidão. Manufatura de
gente, germe se multiplicando no vão da vida.
Tutaninhos
róseos, pedaços de gente bandada encontrei pelo caminho. Tão cheios de amores,
sinceridades e canções que...
Teve
uma hora que lembrei de minha mãe que não se aquietava enquanto eu não
despontasse na Mauriti.
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