Os
anos de chumbo, o santospés e a cabocla
A
notícia viajou a jato, da baixada ao centro da Pedreira. Um caso horrível de
ser e de saber. Coisa estranha de dar medos e arrepios.
A
mulher não resistira à ferroada do santospés.
Foi
vítima de um piolho de cobra também conhecido como lacraia, centopéia,
minaperna ou formiguenta. Encontraram a mulher roxinha da silva.
Já
ia pelos seus 30 anos de formosura. Como se usava dizer, era encorpada,
grandona de tamanho e beleza. Cheia de jeito e viço. Traços singelos e
caboclos. Sorriso farto. Olhos solidários. Simpática de posturas e conversas.
Os cabelos iam dar na cintura e eram o destaque naquele arranjo caboclo.
Lançavam-se arrogantes sobre os ombros, descaiam simétricos pelo corpo,
partidos cuidadosamente com o bailado dos dedos, que iam deixando como marcação,
um traço esbranquiçado infértil, no alto da cabeça. E se potencializavam indisciplinados
para o encandeamento de tantos apreciadores. Uma plumagem negra, sedosa,
compacta, emoldurando a grande dama que já ia além de trinta anos de formosura.
Era conhecida e admirada no bairro.
Contam
que após lavar a louça do almoço, fez uma pequena faxina, escorreu a água do
alpendre, desceu para o quintal e desentupiu a vala que escoava a água do
jirau, que desde a última chuva, estava por acolá de entulho.
O
calor estava da gente correr doido , às duas e poucas da tarde. Um vento
amornado pegava carona no leito do igarapé do Zé e subia a Pedreira envolvendo becos
e passagens. Ela morava do outro lado da Doutor Freitas.
Após
as prendas, asseou o corpo, não se enxugou totalmente. Vestiu somente o vestido
de chita com flores grandes vermelhas. Atou a rede, deitou-se, refrescou o
corpo aos embalos. Um ritmo gostoso. A escápula marcando o compasso. Ronc-ronc.
Ronc- ronc. Ronc...Ronc. Adormeceu com a água secando no corpo, com a aquela
sensação meio que mentirosa, sugestionada, de friagenzinha boa.
Adormeceu
com os longos cabelos para fora da rede, com aquela plumagem sedutora
encostando no assoalho.
As
cem perninhas da lacraia escalaram o cabelo da mulher. Mimetizado, o bicho
estirou-se bem na vaga esbranquiçada que dividia o cabelo da cabocla em duas devastadoras
ondas de sensualidade. E de tal forma que, de longe, poderia ser confundido com
inexplicáveis tranças.
No
silêncio da tarde mormacenta, ferroou.
Tão
potente, o veneno, que a mulher arroxeou na hora.
A
companheira dela, que chegaria mais tarde, ainda tentou acudir. Não havia mais
como. Horrorizada , arrancou a centopéia daquele nicho fatal, entre gemidos e gritos alucinados. O
peçonhento sumiu quicando ondulado, pelo terreiro.
Rodinhas
de conversa se formaram do outro lado da rua. Pequenas aglomerações repercutiam
tamanho assombro. Eu, moleque curioso, me enxeri pelo meio dos outros.
Quando
dei por mim, as sirenes já estavam apitando próximas. Da ladeira da Dr. Freiras
dois Tomara-que-chova despejaram uma penca de soldados. E foi borrachada pra
todo lado. Peguei um pescoção, mergulhei no igarapé do Zé e só boiei no meandro
da Passagem D’Outel. A ordem era dispersar curiosos e fuxiqueiros. Nos anos de
chumbo, o governo não iria permitir ruídos sobre uma tragédia envolvendo a
formosa cabocla que tinha uma companheira, santospés peçonhentos e mormaços da
tarde.
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