sábado, 20 de abril de 2019

crônica da semana- santospés


Os anos de chumbo, o santospés e a cabocla
A notícia viajou a jato, da baixada ao centro da Pedreira. Um caso horrível de ser e de saber. Coisa estranha de dar medos e arrepios.
A mulher não resistira à ferroada do santospés.
Foi vítima de um piolho de cobra também conhecido como lacraia, centopéia, minaperna ou formiguenta. Encontraram a mulher roxinha da silva.
Já ia pelos seus 30 anos de formosura. Como se usava dizer, era encorpada, grandona de tamanho e beleza. Cheia de jeito e viço. Traços singelos e caboclos. Sorriso farto. Olhos solidários. Simpática de posturas e conversas. Os cabelos iam dar na cintura e eram o destaque naquele arranjo caboclo. Lançavam-se arrogantes sobre os ombros, descaiam simétricos pelo corpo, partidos cuidadosamente com o bailado dos dedos, que iam deixando como marcação, um traço esbranquiçado infértil, no alto da cabeça. E se potencializavam indisciplinados para o encandeamento de tantos apreciadores. Uma plumagem negra, sedosa, compacta, emoldurando a grande dama que já ia além de trinta anos de formosura. Era conhecida e admirada no bairro.
Contam que após lavar a louça do almoço, fez uma pequena faxina, escorreu a água do alpendre, desceu para o quintal e desentupiu a vala que escoava a água do jirau, que desde a última chuva, estava por acolá de entulho.
O calor estava da gente correr doido , às duas e poucas da tarde. Um vento amornado pegava carona no leito do igarapé do Zé e subia a Pedreira envolvendo becos e passagens. Ela morava do outro lado da Doutor Freitas.
Após as prendas, asseou o corpo, não se enxugou totalmente. Vestiu somente o vestido de chita com flores grandes vermelhas. Atou a rede, deitou-se, refrescou o corpo aos embalos. Um ritmo gostoso. A escápula marcando o compasso. Ronc-ronc. Ronc- ronc. Ronc...Ronc. Adormeceu com a água secando no corpo, com a aquela sensação meio que mentirosa, sugestionada, de friagenzinha boa.
Adormeceu com os longos cabelos para fora da rede, com aquela plumagem sedutora encostando no assoalho.
As cem perninhas da lacraia escalaram o cabelo da mulher. Mimetizado, o bicho estirou-se bem na vaga esbranquiçada que dividia o cabelo da cabocla em duas devastadoras ondas de sensualidade. E de tal forma que, de longe, poderia ser confundido com inexplicáveis tranças.
No silêncio da tarde mormacenta, ferroou.
Tão potente, o veneno, que a mulher arroxeou na hora.
A companheira dela, que chegaria mais tarde, ainda tentou acudir. Não havia mais como. Horrorizada , arrancou a centopéia daquele nicho  fatal, entre gemidos e gritos alucinados. O peçonhento sumiu quicando ondulado, pelo terreiro.
Rodinhas de conversa se formaram do outro lado da rua. Pequenas aglomerações repercutiam tamanho assombro. Eu, moleque curioso, me enxeri pelo meio dos outros.
Quando dei por mim, as sirenes já estavam apitando próximas. Da ladeira da Dr. Freiras dois Tomara-que-chova despejaram uma penca de soldados. E foi borrachada pra todo lado. Peguei um pescoção, mergulhei no igarapé do Zé e só boiei no meandro da Passagem D’Outel. A ordem era dispersar curiosos e fuxiqueiros. Nos anos de chumbo, o governo não iria permitir ruídos sobre uma tragédia envolvendo a formosa cabocla que tinha uma companheira, santospés peçonhentos e mormaços da tarde.

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