Aos
emboléu
A cachoeira
do Juruá, a mais braba daquele trecho do rio, havia ficado para trás. No rumo
de cima, ainda excitadas, mas bem mais comportadas, as águas se juntavam em
canal único, de fluxo ligeiro e compacto. Nos bateríamos com corrente forte, e
com manobras arrojadas da rabeta, por uma boa meia hora ainda, até chegarmos ao
bordado de lagoas rasas e calmas à margem direita do Xingu. Lá as lagoas exigem
habilidade do barqueiro para desviar das pedras escondidas no leito do rio. Foi
num desses lajeiros do fundo que a hélice da lancha bateu e travou o motor. À
menor pressão de uma das discretas corredeiras, a lancha alagou e embicou de
bubuia descendo o rio.
Quando
a avistamos, deu pra perceber a peleja do barqueiro se agarrando ao casco. Lutando
para não perder a vida nem a embarcação. Um choque ver aquilo. A lancha vinha
aos emboléu, com a parte de proa pra fora d’água. A outra metade, onde ficava o
motor, era arrastada afundada. Demonstrando a calma exigida para administrar
aquela situação e valendo-se da parte emergida da lancha, o barqueiro seguia
descendo as corredeiras até que aparecesse socorro. A providência, entretanto,
tinha que vir antes que ele chegasse à grande cachoeira do Juruá. Aquela ali,
não admitia heróis.
Deu-se
a providência e nós aparecemos.
O
rio Xingu é do bem.
Mas
parece que naquele dia cobrava, cautelarmente, a conta pelas agressões que se
anunciavam num futuro próximo.
Para
mim, que subia aquela parte do rio sempre com indisfarçável encantamento,
aquela cena foi marcante. Senti um desalento, uma tristeza, um medo que em todo
tempo navegando aquelas águas, não havia sentido.
Nunca
me ocorrera desconfiar de espécie ou qualidade do Xingu. Era o meu lugar de
raras felicidades. Tudo me dava. Água muita, peixe de não caber nos currais,
paisagens inacreditáveis, recantos mágicos, registros preciosos da presença dos
nossos ancestrais gravados nas pedras.
Em
todo canto o Xingu exibia riqueza. A impressão que eu tinha era que se a gente
arranhasse uma pequena formação argilosa enferrujada ao pé de qualquer
barranco, arriscava vir uma fagulhazinha de ouro amarela brilhante presa na
unha.
A
jóia arqueológica também me mundiava. Por vezes refiz a trajetória das nações
indígenas do Xingu, seguindo o rastro de cerâmica enterrada em sítios
abandonados. E, pelo que percebi, as peças marcavam a migração dos povos,
sinalizando a caminhada desde as praias adjacentes ao rio Amazonas até as
reservas atuais do Parque Nacional, lá pros lados do Mato Grosso. E essa
reconstrução, esse caminhar das tribos em direção ao planalto, me desencavou em
pessoa melhor, mais crítica. Me fez buscar perdões pela interferência que
causamos e que provocou a expulsão dos verdadeiros donos daquele paraíso.
O
rio era meu local de trabalho, meu escritório. Batia ponto em qualquer prainha
na companhia de tracajás e jacarés. Nem tinha medo. Tinha sim, um
deslumbramento que não se media pela maior das fitas métricas.
Enquanto
via a canoa descendo alagada e aquele homem colado a ela, resistindo, eu esfarelava
pensamentos e deixava um cuí de culpas atapetando a lâmina d’água do majestoso
rio.
Nos
aproximamos, recolhemos o barqueiro, rebocamos a lancha para uma barra e
seguimos viagem. Admirando. Respeitando o Xingu que desde a serra do Roncador,
é lugar de raras felicidades.
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