O
céu de Beinho
A
noite é uma rede trançada em maleáveis mistérios, em medos indistintos.
Para
mim, era só uma passagem, uma etapa turva do dia. O custo era eu bater o cartão
nas onze badaladas do relógio de ponto e correr para pegar o cristo do Jurunas-Conceição
ou do Sacramenta-Humaitá, que meu espírito acuado dava lugar à inspiração e se
alinhava com a possibilidade compensadora do encontro.
(Minha
mãe estava à minha espera, recolhida junto ao muro que definia os limites da
vila em que morávamos. O radinho de pilha captando as ondas da noite, trazendo
lembranças, fazendo o tempo passar).
Às
vezes, a espera ia além do combinado.
E
a noite não era mais aquela rede tecida em suspeições. Redimia-se dos
vaticínios e voltava-se à luz dos refletores do Baenão. Ocorria quando tinha
jogo e a gente esnobava das artimanhas noturnas, nos adiantando para assistir
ainda aos 15 minutos finais da partida. Era o momento em que os portões se
abriam para a saída dos torcedores e a minha patota de empacotadores mirins, de
supermercado, subvertia o fluxo: enquanto uns iam embora, nós ganhávamos a
arquibancada alegres, satisfeitos e atentos aos eletrizantes lances finais do
jogo, torcendo pra sair um golzinho no qual pega. Para nós, tanto fazia qual
dos contendores assinalasse um tento, o que importava era a euforia de estar na
arquibancada depois de uma jornada de trabalho.
(Mamãe
não arredava o pé. Sabia que, se demorava, era porque não resistia a alguma
tentação de menino. Era comum que nessa espera, tivesse a companhia do Beinho,
nosso vizinho, que espiava como notívago, os movimentos da rua. Beinho já era
um rapaz taludo, beirava os 18 anos. Tinha só pai, motorista particular de um
barão lá das bandas de Nazaré. Não estudava, virava os dias embaixo do pé de
acácia mexendo com as meninas a caminho do Donatila. Cultuava o corpo. Tinha
braços musculosos, fazia ferro. Eu achava que ele tinha as pernas finas.
Exibia-se em arremedos das coreografias do Bruce Lee e fabricou o próprio nunchako,
com o qual fazia demonstrações para a molecada da Mauriti e a gente ficava
bestinha de ver tanta agilidade, não escondendo o receio de, uma hora, aquela
torinha escapulir das ligeirezas dele e fazer uma brecha na cabeça de um de
nós. Tinha uma aproximação bem maior com o resto da galera da rua, nas disputas
de peteca. Ele era da elite. Triângulo cheio. Disputava só acima de cem
petecas. Era também uma das maiores vítimas do alaússa. Metódico que era, raramente
encerrava a disputa tecando a peteca de jogo do adversário. O negócio dele era
retirar as petecas de dentro do triângulo, uma por uma. Ia enchendo a lata, só
na caté. Acabada a peleja, ele ostentava uma lata por acolá de peteca e era
nessa hora que vinha um mal elemento e dava o alaússa. Beinho não ligava. Salvava
o que podia do seu patrimônio que se espalhava pelo chão. Sabia que no dia
seguinte recuperaria tudo de novo. Só na caté).
As
estrelas que ponteavam o tisnado da noite eram luzidias, cintilantes, vítreas.
Baluluscas, colombianas, ovaladas, raras, matizadas. Muitas e quantas vezes,
quando chegava do trabalho, depois das onze da noite, estavam ao pegado do muro
me esperando. Mamãe, ouvindo as mais belas canções, no radinho de pilha;
Beinho, olhando pro céu minado de petecas.
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