sábado, 23 de março de 2019

crônica da semana - ao mestre com carinho


Gargarejo com jucá
Do início ao fim, a minha vida estudantil se realizou no regime militar. De lá, trago lições e apreensões.
Devo dizer que o tom desta conversa, entende o início da minha trajetória, na Primeira Série Atrasada da Aparecida, escola mantida, à época, pela Igreja; e testifica o fim se dar na minha formatura, pela Escola Técnica, em 1982, nos estertores do regime, quando o presidente do Brasil era o Figueiredo, general que, ao cheiro do vulgo, preferia a catinga dos cavalos.
Naquela primeira fase, de Ivo viu a uva e contas de arme e efetue, na Aparecida, não percebia os braços fortes da pátria mãe me aplicando uns transpescos (daqueles que se notabilizaram aos costumes). A atmosfera era pueril, branda. Inspirava inocência, traquinagens da idade, mas, de regra, quietude.
Quando entrei para o primeiro grau, o dito curso de quinta a oitava, a chapa fervilhou. O hino todo dia era canto certo. Os dois primeiros anos, avalio que foram civilizatórios. Era o período de adestramento (imposição de regras de comportamento, de linguagem casta; recomendações quanto ao jeito de andar, de ser e de estar). E de higienização (minha professora de Educação para o Lar olhava nossa unha se estava aparada, procurava sujinhos atrás da orelha, certificava-se de olhos remelentos na turma, inspecionava a bainha da calça dos meninos e o plissado engomado da saia das meninas). Era uma senhorinha que usava ainda, rede nos cabelos. Não empregava a palmatória, mas reinava. Desconheço a formação daquela professora para estar ali, praticando a pedagogia asséptica. Mas que deixou marcas em discretos puxões de orelhas, deixou. Para não ficar na lembrança como uma pessoa tão ranzinza, a cada final de período, dava uma forra. Fazia uma salada de frutas (com os ingredientes todos fornecidos por nós).
Nos dois últimos anos, sétima e oitava, percebi a doutrinação. Havia um professor de Educação Moral e Cívica, cuja missão única e definida era fazer propaganda do governo. Contávamos como questões certas de prova, saber o nome dos ministros de Estado.  E era tão dedicado e tão incisivo na missão, que inculcava na gente aquela plêiade oficial. Éraste! Até hoje sei o staff de Figueiredo inteirinho do couto e silva. Não sem dor. Tenho este elenco na minha memória como um insubmisso trauma.
Além do viés ideológico, o regime permitia posturas algo sádicas, perfeitamente percebidas em professores que, fosse hoje, fariam coro com a turma da escola sem partido e a dos cinegrafistas de alunos.
Um caso desditoso, depois do primeiro grau, malfazejamente, foi me achar na Escola Técnica.
Tratava-se de um professor de Inglês que exigia nossa camisa abotoada até o último botão, a nos apertar o gogó; não deixava que a gente colocasse pés, livros, bolsas e outros trecos no compartimento de baixo da carteira da frente; proibia idas ao banheiro. Escolhia sempre uma menina branca e aporcelanada para chefe de turma e tinha um pigarro. Mas não era aquele pigarro que antecede a tosse ou que arranha o goto. Era uma contração que provocava um ruído pra dentro. Dizíamos que ele tinha um pigarro intrínseco. Um embaraço íntimo. Uma vergonha gutural. Era o espasmo ideológico do regime a sufocar-lhe o senso. Uma lição e uma apreensão: nesses casos, nem o gargarejo com jucá dá jeito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário