sábado, 16 de junho de 2018

crônica da semana- grande sertão


Amar e outros medos parte VI
Tem coisas que a gente só de ouvir falar, se treme todo, né. O romance “Grande Sertão: Veredas”, durante muito tempo me deu tremeliques e chiliquitos. Fugia dele como o chifrudo foge da cruz. Ouvia e metabolizava vaticínios sentenciando que eu não iria entender nada. Que a leitura era difícil. Comparações intrincadas me faziam pirar de medo. Certa vez, de um entendido, ouvi dizer que Guimarães Rosa era o Shakespeare de Cordisburgo. Pronto. Imaginei ter ou não ter aquele escritor que nasceu em uma cidade que traz o coração no nome, um jeito indecifrável de contar suas histórias. Eis a questão. E pra que lado do mundo ficava Cordisburgo mesmo? Algo de podre havia naquele reino de temores e covardias.
Nunca li Shakespeare no original, enveredei pelas traduções e entendi a alegoria de Hamlet como um dos maiores toques da arte, na vida. Leva a empatia. Tirante o inglês, o que se torna e o que se deixa é que quando o coração é triscado, tudo fica mais fácil. Há de se ficar atento ao movimento. Porque por mais codificada que seja a narrativa, por mais ocultado seja o significado e por mais objetado se forje o significante, quando bate às portas da cidade do coração, tudo se desvela. O que é fluido aflora; o que é opaco transparece-se, o que é denso e fechado liberta-se. E a gente que ama as armadilhas de uma narrativa, na hora que chega naquela página em que se inicia a luta terminal entre Diadorim e Hermógenes, nesse instante, a gente reconhece a linguagem do amor. E entende tudo.
Guimarães Rosa é um escritor refinado. Articulado na forma de escrever, apegado a dizeres mundanos submersos, meticuloso artesão de discursos solitários. Avia-se bem, falando sozinho e em desenrolares verbais pródigos, seriados em lógicas de aventura e tensão.
É verdade. Tinha passamentos ao menor movimento de catar o livro da estante e iniciar a leitura de “Grande Sertão:Veredas”. Até que um dia, decidi.
Como diz o poeta Daniel Leite. A cada palavra, uma fragmentação, um vazio silencioso. Cheio de sussurros ocos, dores vazadas e sofrimentos que transladam no tempo, no espaço, nos sertões. A cada vazio, a contradição em espera. A inquietação vem daquele silêncio ruidoso levado pelo vento penitente que sopra margeando o São Francisco, para dentro de corações brutos.
A história de um sertanejo solitário soa sempre no silêncio (ou quando muito, num zunido de bala). Na espera. A única vez que a leitura difícil, às vezes técnica, analítica demais, se depara com um ecoar verdadeiro... O momento decisivo em que se percebe um som altivo e veloz, é quando a voz do coração se propaga em tucotucos comoventes. A passagem em que Diadorim é abatida por Hermógenes ao final de sangrenta luta é algo de tão emocionante e forte que não se traduz pela força do desfecho na aventura dos jagunços. É imensamente enternecedora porque revela um amor impossível, um amor proibido nas veredas, nos sertões. Nesse instante, a gente faz um intervalo tático na leitura, fecha brevemente o livro, sente as lágrimas brotarem dos olhos e percebe que entendeu tudo daquele livro que tão difícil era.


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