Amar
e outros medos parte VI
Tem
coisas que a gente só de ouvir falar, se treme todo, né. O romance “Grande
Sertão: Veredas”, durante muito tempo me deu tremeliques e chiliquitos. Fugia
dele como o chifrudo foge da cruz. Ouvia e metabolizava vaticínios sentenciando
que eu não iria entender nada. Que a leitura era difícil. Comparações
intrincadas me faziam pirar de medo. Certa vez, de um entendido, ouvi dizer que
Guimarães Rosa era o Shakespeare de Cordisburgo. Pronto. Imaginei ter ou não ter
aquele escritor que nasceu em uma cidade que traz o coração no nome, um jeito indecifrável
de contar suas histórias. Eis a questão. E pra que lado do mundo ficava
Cordisburgo mesmo? Algo de podre havia naquele reino de temores e covardias.
Nunca
li Shakespeare no original, enveredei pelas traduções e entendi a alegoria de
Hamlet como um dos maiores toques da arte, na vida. Leva a empatia. Tirante o
inglês, o que se torna e o que se deixa é que quando o coração é triscado, tudo
fica mais fácil. Há de se ficar atento ao movimento. Porque por mais codificada
que seja a narrativa, por mais ocultado seja o significado e por mais objetado
se forje o significante, quando bate às portas da cidade do coração, tudo se
desvela. O que é fluido aflora; o que é opaco transparece-se, o que é denso e
fechado liberta-se. E a gente que ama as armadilhas de uma narrativa, na hora
que chega naquela página em que se inicia a luta terminal entre Diadorim e
Hermógenes, nesse instante, a gente reconhece a linguagem do amor. E entende
tudo.
Guimarães
Rosa é um escritor refinado. Articulado na forma de escrever, apegado a dizeres
mundanos submersos, meticuloso artesão de discursos solitários. Avia-se bem,
falando sozinho e em desenrolares verbais pródigos, seriados em lógicas de
aventura e tensão.
É
verdade. Tinha passamentos ao menor movimento de catar o livro da estante e
iniciar a leitura de “Grande Sertão:Veredas”. Até que um dia, decidi.
Como
diz o poeta Daniel Leite. A cada palavra, uma fragmentação, um vazio silencioso. Cheio de
sussurros ocos, dores vazadas e sofrimentos que transladam no tempo, no espaço,
nos sertões. A cada vazio, a contradição em espera. A inquietação vem daquele
silêncio ruidoso levado pelo vento penitente que sopra margeando o São
Francisco, para dentro de corações brutos.
A
história de um sertanejo solitário soa sempre no silêncio (ou quando muito, num
zunido de bala). Na espera. A única vez que a leitura difícil, às vezes
técnica, analítica demais, se depara com um ecoar verdadeiro... O momento
decisivo em que se percebe um som altivo e veloz, é quando a voz do coração se
propaga em tucotucos comoventes. A passagem em que Diadorim é abatida por
Hermógenes ao final de sangrenta luta é algo de tão emocionante e forte que não
se traduz pela força do desfecho na aventura dos jagunços. É imensamente
enternecedora porque revela um amor impossível, um amor proibido nas veredas,
nos sertões. Nesse instante, a gente faz um intervalo tático na leitura, fecha
brevemente o livro, sente as lágrimas brotarem dos olhos e percebe que entendeu
tudo daquele livro que tão difícil era.
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