No
leso
Tenho
a mais absoluta certeza que o mundo, as coisas do mundo começaram a desandar,
depois que a gente começou a chamar papagaio de pipa.
Cheguei
a essa conclusão quando ouvi um rapaz relatar reminiscências da infância. Dizia
ele, que tinha boas lembranças das traquinagens, dos jogos de bola na quadra do
colégio, das disputas no Playstation, das brincadeiras de pipa (ops!).
Aí
travei. É o descritivo claro de uma sociedade em decadência ancorar-se na
‘pipa’ para referendar uma brincadeira das mais nobres. Comparando, recorri às
minhas reminiscências.
Esta
designação ‘pipa’, nem havia, no meu tempo. Era coisa de outras plagas, um nome
até usado, mas usado pelo pessoal de fora. O que havia, era um elenco de peças
voadoras tecidas na mais fina seda. Na ordem exata de charme e elegância:
papagaio, rabiola, cangula e por último, lá no rés da colocação, a curiqueta.
Aí sim, desta lista, dá gosto lembrar. Até a mais simplesinha e corriqueira das
componentes desse grupo, a curica (ou curiqueta) tinha lá sua arte. A molecada
usava até papel de pão para tecer uma. Caprichava no molde em peça única e
também no rabo, da mesma forma, inteiriçado. Fazia a armação com piaçava
arrancada da vassoura Alvorada ou de telas flexíveis retiradas do trançado
curvo de paneiros, que embalavam as compras no supermercado. Era brincadeira do
menino mais novinho, aquele que só ficava ali pela calçada de casa, ou nos
cuidados do quintal. Não subia tão alto e nem era boa para dar cabeça, mas já
valia para quem não podia ganhar as ruas. As outras três peças, não, já tinham
uma aerodinâmica mais elaborada, resultante de cuidadosos arranjos com talas rijas
e linheiras. Eram revestidas com sedas estilizadas, coloridas, em desenhos
simétricos, com motivos de clubes de futebol, ou animais da floresta. Eram um
espetáculo. O rabo era um detalhe à parte. Era confeccionado com pequenas tiras
de pano, atadas a um trecho de linha pendente da peça em seda.
Nos
(meus) tempos de papagaio e companhia, apostávamos na ‘esperança equilibrista’,
havia um anseio em alcançar a estética leve e colorida, um desejo incontrolável
de voar. O mundo, na época da curiqueta, era de inspirações cáusticas, de
intenções repressivas, mas nos postávamos à rua, de bandeira (e tubo de linha)
em punho, querendo ganhar céus. E ganhamos. Nos anos dos célebres laços
realizados no céu de Belém, onde peças clássicas de papagaios ‘iguinadores’ se
exibiam antes do decisivo enfrentamento e antes de um deles ir às quedas,
passávamos por um período evolutivo que vislumbrava descartar a intolerância, o
preconceito, as intimidações e as brutalidades da elite rasa nacional.
Eis,
porém que de repente, do nada, tudo muda, o que era arte é crime, o que era cor
é ofensa, o que era um pedacinho de céu vira um sulfúrico inferno. Hordas de
moleques se batem, se digladiam, competem em esbarrões desesperados, por um
pedaço desenxabido de plástico armado em débeis talas, despencando pelas ruas
de Belém. A tal pipa nos roubou o futuro. Perdemos o rumo do vento. Estamos às
quedas. Em suave descendência. E no leso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário