sábado, 24 de março de 2018

crônica da semana - pipa no leso


No leso
Tenho a mais absoluta certeza que o mundo, as coisas do mundo começaram a desandar, depois que a gente começou a chamar papagaio de pipa.
Cheguei a essa conclusão quando ouvi um rapaz relatar reminiscências da infância. Dizia ele, que tinha boas lembranças das traquinagens, dos jogos de bola na quadra do colégio, das disputas no Playstation, das brincadeiras de pipa (ops!).
Aí travei. É o descritivo claro de uma sociedade em decadência ancorar-se na ‘pipa’ para referendar uma brincadeira das mais nobres. Comparando, recorri às minhas reminiscências.
Esta designação ‘pipa’, nem havia, no meu tempo. Era coisa de outras plagas, um nome até usado, mas usado pelo pessoal de fora. O que havia, era um elenco de peças voadoras tecidas na mais fina seda. Na ordem exata de charme e elegância: papagaio, rabiola, cangula e por último, lá no rés da colocação, a curiqueta. Aí sim, desta lista, dá gosto lembrar. Até a mais simplesinha e corriqueira das componentes desse grupo, a curica (ou curiqueta) tinha lá sua arte. A molecada usava até papel de pão para tecer uma. Caprichava no molde em peça única e também no rabo, da mesma forma, inteiriçado. Fazia a armação com piaçava arrancada da vassoura Alvorada ou de telas flexíveis retiradas do trançado curvo de paneiros, que embalavam as compras no supermercado. Era brincadeira do menino mais novinho, aquele que só ficava ali pela calçada de casa, ou nos cuidados do quintal. Não subia tão alto e nem era boa para dar cabeça, mas já valia para quem não podia ganhar as ruas. As outras três peças, não, já tinham uma aerodinâmica mais elaborada, resultante de cuidadosos arranjos com talas rijas e linheiras. Eram revestidas com sedas estilizadas, coloridas, em desenhos simétricos, com motivos de clubes de futebol, ou animais da floresta. Eram um espetáculo. O rabo era um detalhe à parte. Era confeccionado com pequenas tiras de pano, atadas a um trecho de linha pendente da peça em seda.
Nos (meus) tempos de papagaio e companhia, apostávamos na ‘esperança equilibrista’, havia um anseio em alcançar a estética leve e colorida, um desejo incontrolável de voar. O mundo, na época da curiqueta, era de inspirações cáusticas, de intenções repressivas, mas nos postávamos à rua, de bandeira (e tubo de linha) em punho, querendo ganhar céus. E ganhamos. Nos anos dos célebres laços realizados no céu de Belém, onde peças clássicas de papagaios ‘iguinadores’ se exibiam antes do decisivo enfrentamento e antes de um deles ir às quedas, passávamos por um período evolutivo que vislumbrava descartar a intolerância, o preconceito, as intimidações e as brutalidades da elite rasa nacional.
Eis, porém que de repente, do nada, tudo muda, o que era arte é crime, o que era cor é ofensa, o que era um pedacinho de céu vira um sulfúrico inferno. Hordas de moleques se batem, se digladiam, competem em esbarrões desesperados, por um pedaço desenxabido de plástico armado em débeis talas, despencando pelas ruas de Belém. A tal pipa nos roubou o futuro. Perdemos o rumo do vento. Estamos às quedas. Em suave descendência. E no leso.


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