sábado, 10 de março de 2018

crônica da semana - chuva fevereiro


Chovendo no molhado
Este ano foi a segunda vez, em 50 anos, que o mês de fevereiro passou dos limites. Foi chuva que não acabava mais. Eu já desconfiava que este pampeiro estava fora da curva. Sou atento. Desde há muito, exercito o faro para a chuva. Nos trabalhos de Geologia, se o tempo estivesse fechado, a turma nem saía da rede (ou do pano, como a moçada gostava de falar). A mim, cabia a decisão. Era o dia clarear um pouquinho, eu dava um tempo, tomava um cafezinho na cozinha, espiava a formação de nuvens, verificava se tinha neblina (neblina é sinal de sol durante boa parte do dia), ouvia os passarinhos, percebia a brisa. Fazia uma combinação com os indícios. Fosse a escolha, o pano, liberava a galera. Outra fosse a decisão, após o comando, era rápido que a turma se arrumava e caía na lida. Tínhamos que aproveitar os sinais de estio. Normalmente, acertava. Mas quando a minha previsão furava, era deprê total. Ainda bambeio quando lembro ter liberado a equipe pra ficar no pano, o dia permanecer nublado, mas não cair uma gota do céu. Ficava chato para a corporação. Como justificar aquela ruma de homem no acampamento só matando o bandeco? Pior, no entanto, era quando acreditava no estio, saía com a equipe, documentos, instrumentos e lá pelas tantas, ainda na caminhada rumo à frente de trabalho, o aguaceiro arriava. Era perda total. De roupa, de víveres, mapas, formulários. Na dúvida era bem melhor ser desmoralizado pelo sol tímido que ser estiolado pelo toró.
Ainda hoje, numa outra escala, vivo nessa peleja. Meu trabalho, ou o melhor momento para fazer o meu trabalho dá-se num tempo sem chuva. Abandonei o faro e agora me avio em ferramentas mais racionais. Acudo-me a um gráfico pluviométrico que traz a média dos últimos10 anos. É meu guia. Ele me mostra que pelo comum, o mês mais chuvoso do inverno amazônico é o mês de março. Chove ali na média de 500 milímetros. Este ano, o mês de fevereiro deu um baile. Choveu no molhado e antes de findar os 28 dias já tinha registrado mais de 600 milímetros.
É o tempo dela. Essa chuvinha de agora, vem para nós paraenses, como uma benção, depois do calorão de esturricar o cocuruto, de final de ano. Logo em janeiro, é de esperar que a gente esteja curtindo os dias molhados, o friozinho de 23 graus. Mas os dias encharcaram demais. O romantismo das noites friínhas deu lugar a apreensões e medos. A nostalgia de uma manhã chuvosa revelou perigos iminentes. A cidade se inviabilizou, em várias oportunidades, nas primeiras horas do dia. Caos e insatisfação. Alagamentos, interdições, árvores caindo. A infraestrutura das nossas cidades não assegura um fluxo ordeiro das correntes formadas durante a chuva. Deus ou a natureza são logo citados como responsáveis pelo nosso sofrimento. Algures, o disse-me-disse fabrica catástrofes, o senso comum ratifica flagelos, vítimas falsas e verdadeiras confundem-se na enxurrada. E uns bonitinhos, ó, só de boa, manipulando, plantando votos e simpatias.
Março chegou dando um estiozinho de forra, mas não nos enganemos. Meu gráfico referenda mais potência de pampeiro.

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