A
palavra reanima (“e tem aquele negoço”)
Se
tem uma moléstia que pode ser também da mulesta, era com essa combinação que eu
me batia na terça-feira próxima passada: Com uma gripe da mulesta. Que me
pegou, me bateu, me rebateu, me sacudiu e me jogou em pedacinhos, na cama,
pleno feriado da República.
Antes,
tive que chegar em casa.
Vinha
do trabalho que não conseguia enxergar nada na minha frente. A impressão que
tinha era que a maçã do rosto estava do tamanho de uma bola de basquete de
tanta constipação. Cada espirro era um sacolejo da caixa torácica que se
assemelhava a um trator passando aquelas pastilhas metálicas poderosas, em cima
da gente. O mundo era um burburinho intenso no ouvido, mas longe, oco,
ressonante e úmido.
Até
que me aquietei naquela cadeira alta, no final do ônibus e as coisas foram se
ajeitando. Minha casinha, meu sossego, meu repouso necessário, meu chá salvador
de limão com alho estavam dali a quarenta e poucos minutos de mim.
Tinha
até um dinheirinho, e havia me programado para quando chegasse de Barcarena,
pegaria um táxi, para que minha agonia fosse mais breve. Mas tem aquele
‘negoço’ da ação automática, do ritmo cotidiano. Some-se ainda, o meu estado de
estuporamento avançado. Deu-se, então,
que quando s’spantei lá estava eu na cadeira alta do ônibus.
Mais
calmo, tornei. Abri as janelas do coletivo, destaquei do bolso os lencinhos
absorventes para atuar na coriza ou mesmo num espirro explosivo. Nessa hora
senti falta do meu celular para ouvir um sonzinho. Ficou pelo caminho, perdido
na minha memória. Irrecuperável, desapareceu escondido no meu transe, no meu
entorpecimento gripal. Paciência.
Mais
na frente da viagem, sentou um rapazinho
ao meu lado e dali em diante, viveríamos o estresse dos engarrafamentos de boca
da noite, que paralisam a cidade.
Teve
uma hora que ele fez uma ligação e ficou um tempão, a bom expressar detalhes
daquele momento. Falava para alguém que a aula começa às 6 e quinze. Que ele
reconhece o inferno que se transforma o trânsito nesse horário de pico. Admite
que daquele jeito não vai chegar nunca no horário. Traçou pontos críticos. Na
frente do Santa Rosa. Naquela dobra do Shopping, na Doca. Mas já estava
chegando. Perderia a primeira aula. Mas estava chegando.
Percebi,
pela sequência da conversa, que a pessoa do outro lado da linha, apelando para
obviedade, perguntou por que ele não saía de casa mais cedo, já que conhecia as
travas do caminho. Nesse momento ele foi fatal. Cravou em verso, estilo,
vivência e contundência. Respondeu dizendo que até poderia sair mais cedo de
casa (e arrematou na maior caté), “mas tem aquele negoço: chove”.
Eu
ali, precisado, carente de um descanso, de um chazinho e um colinho provedor.
Diante de uma declamação desprovida de qualquer remorso, e ao mesmo tempo
nutrida de uma composição estilística genial, por uns instantes declinei de dar
trela às dores do trânsito e à gripe. A gente tá pê da vida, né, teve um dia
horroroso, não teve? Mas tem aquele negoço: a palavra franca e inusitada
reanima.
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