sábado, 18 de novembro de 2017

crônica da semana - negoço

A palavra reanima (“e tem aquele negoço”)
Se tem uma moléstia que pode ser também da mulesta, era com essa combinação que eu me batia na terça-feira próxima passada: Com uma gripe da mulesta. Que me pegou, me bateu, me rebateu, me sacudiu e me jogou em pedacinhos, na cama, pleno feriado da República.
Antes, tive que chegar em casa.
Vinha do trabalho que não conseguia enxergar nada na minha frente. A impressão que tinha era que a maçã do rosto estava do tamanho de uma bola de basquete de tanta constipação. Cada espirro era um sacolejo da caixa torácica que se assemelhava a um trator passando aquelas pastilhas metálicas poderosas, em cima da gente. O mundo era um burburinho intenso no ouvido, mas longe, oco, ressonante e úmido.
Até que me aquietei naquela cadeira alta, no final do ônibus e as coisas foram se ajeitando. Minha casinha, meu sossego, meu repouso necessário, meu chá salvador de limão com alho estavam dali a quarenta e poucos minutos de mim.
Tinha até um dinheirinho, e havia me programado para quando chegasse de Barcarena, pegaria um táxi, para que minha agonia fosse mais breve. Mas tem aquele ‘negoço’ da ação automática, do ritmo cotidiano. Some-se ainda, o meu estado de estuporamento  avançado. Deu-se, então, que quando s’spantei lá estava eu na cadeira alta do ônibus.
Mais calmo, tornei. Abri as janelas do coletivo, destaquei do bolso os lencinhos absorventes para atuar na coriza ou mesmo num espirro explosivo. Nessa hora senti falta do meu celular para ouvir um sonzinho. Ficou pelo caminho, perdido na minha memória. Irrecuperável, desapareceu escondido no meu transe, no meu entorpecimento gripal. Paciência.
Mais na frente da viagem,  sentou um rapazinho ao meu lado e dali em diante, viveríamos o estresse dos engarrafamentos de boca da noite, que paralisam a cidade.
Teve uma hora que ele fez uma ligação e ficou um tempão, a bom expressar detalhes daquele momento. Falava para alguém que a aula começa às 6 e quinze. Que ele reconhece o inferno que se transforma o trânsito nesse horário de pico. Admite que daquele jeito não vai chegar nunca no horário. Traçou pontos críticos. Na frente do Santa Rosa. Naquela dobra do Shopping, na Doca. Mas já estava chegando. Perderia a primeira aula. Mas estava chegando.
Percebi, pela sequência da conversa, que a pessoa do outro lado da linha, apelando para obviedade, perguntou por que ele não saía de casa mais cedo, já que conhecia as travas do caminho. Nesse momento ele foi fatal. Cravou em verso, estilo, vivência e contundência. Respondeu dizendo que até poderia sair mais cedo de casa (e arrematou na maior caté), “mas tem aquele negoço: chove”.
Eu ali, precisado, carente de um descanso, de um chazinho e um colinho provedor. Diante de uma declamação desprovida de qualquer remorso, e ao mesmo tempo nutrida de uma composição estilística genial, por uns instantes declinei de dar trela às dores do trânsito e à gripe. A gente tá pê da vida, né, teve um dia horroroso, não teve? Mas tem aquele negoço: a palavra franca e inusitada reanima.


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