sábado, 25 de novembro de 2017

crônica da semana - consciência humana

O meu amigo aqui (ou: o dia da consciência humana)
Arte que me deixa piririca da vida é quando a pessoa esquece o nome da gente. Nem de todo mundo, óbvio, tenho zanga. Entendo que seja comum, nomes serem esquecidos quando não são constantes, presentes. Eu mesmo sou fanchão de esquecer. Convivo ali, na rapidola, desapego, passa um ano, passa outro. Uma chuva de abril, outra de dezembro e quando a figura reaparece, confesso: é um custo lembrar o nome. Dou o desconto. O tempo torna rarefeitos os arquivos, esvazia o tino, desnorteia certeza e precisões.
A minha teima é com aquele um que se diz amigo. Que divide tarefas no trabalho, ou por outra te sonda, te rodeia. Tenho pra mim, que este desatino vem nutrido, olha, olha, pelo desprezo. Traz embutido um preconceito latente.
Aconteceu uma vez, em Rondônia, de doer e não esquecer. Camarada trabalhava comigo, ali, ao pegado. Todas as noites, estávamos ombreados na resistência contra a solidão, naquele ermo, entornando umas rodadas do bom birinaite, batendo uma viola, ouvindo uns vinis, falando de trabalho, ainda com as botas enlameadas do dia. Morávamos num alojamento de parede-meia. Éramos, por assim dizer, próximos.
Certa vez a namorada veio fazer-lhe uma visita. A pequena era de São Paulo. Passou uns quinze dias com a gente, na mina, vivendo aquela rotinha de viola, de birinaite, de ermo, de calcanhares enlameados.
Deixa estar que passado um tempo e tendo a digníssima voltado para São Paulo, presenciei o contato do camarada por telefone, com ela. Em dado momento, esbanjando simpatia, disse que eu estava presente, o amigo, ali ao lado. Ao perceber que ela não estava lembrando de mim, ele refrescou-lhe a memória: “aquele negrinho que tocava violão comigo”. Agora mire e veja. Agora mire e veja se não dá pra ficar de banda com um sujeito desse.
De outra maneira, o sujeito lança mão desse expediente para te dar aquele gelo. Te ocultar.
Em Barcarena, durante algum tempo, fui dirigente sindical. Era difícil alguém não me conhecer na fábrica. Eram incontáveis as vezes que eu empunhava o microfone e conversava com a categoria em assembleias e mobilizações.
Deixa estar de novo, que eu era um sindicalista atentado e por isso, tinha lá meus desafetos, na esfera de comando da empresa. Todo mundo da outra parte, queria tirar uma casquinha de mim. Houvesse a chance, davam um trisca.
Pois calhou d’eu fazer um treinamento com um camarada que era tido e havido como um grande pelego. Enquanto palestrava aquela sensaboria institucional, quando queria referenciar alguma doutrinação, virava pra mim e buscava cumplicidade: “não é, meu amigo?” Ou virava para a turma e me envolvia na questão; “faz de conta que o meu amigo aqui...” Era nítida a intenção de ocultar meu nome, e ao mesmo tempo, de tentar credenciar o discurso dele com a minha presença.
E eu que não creio, dou benza a Deus pela paciência que me outorgou naquele dia.
O tempo torna rarefeitos os arquivos. Mas intenções nocivas, o exercício da degradação, o preconceito, humilhações e lampejos clássicos da consciência humana, essas coisas a gente não esquece.



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