sábado, 16 de setembro de 2017

crônica da semana - patrimônio cultural

O patrimônio e a pamonha
Um dos resultados desse estado de coisas é o contágio. Agentes ativos e passivos sucumbirão à piração espalhada no qual pega. Agradeço ao bom pai, que eu não seja exemplo para nada, e para ninguém, mas se for tirar por mim...
Mire e veja se não é um desatino: a água geladinha, corrente e transparente, em profundidade boa para garantir um senhor dum tibum. A maravilha de um igarapé pródigo, correndo ao meu lado, me convidando para os prazeres da natureza, e eu, entre incrédulo, indignado e bestão, me pego conferindo o sujeito operar aquela aparelhagem dos infernos montada na mala do carro dele, pelo controle remoto. Avalio que aquilo só pode ser produto do mais puro e indissolúvel sadismo.
Ocorreu no final de semana próximo passado, logo na biqueira de estes monstrengos barulhentos serem indicados pela Câmara, como patrimônio cultural e imaterial de Belém.
Não bastasse o barulho grassar em cada palmo desta cidade, agora é reconhecido como um bem cultural. Égua-te, pira-paz.
Por outra,vamos à vida real. Dez, entre dez pessoas, com quem entabulo uma conversa sobre este assunto, relatam algum tipo de pendenga. Uma zanga, uma humilhação. Para tirar as provas, aproveitei apara fazer umas comparações regionais, ensejando a visita de uma amiga vinda de Manaus. Fiz aquela sabatina. Perguntei sobre o calor, o tacacá com jambu pinçado a palitinho, o transporte público, e, é óbvio, sobre o barulho. De Manaus, livrou a barra. Mas de Belém, não deu um desconto. Diz-se apavorada. Os pais moram na Sacramenta e há mais de dez anos sofrem com um vizinho que tem um patrimônio cultural na porta. O pobre do casal foi bater no juiz. Parece até uma coisa, essas pessoas só podem ter pacto com o mais graduado dos satanases. Nada os detêm. Muitos demonstram abertamente serem protegidos por gente importante. Prova é que, segundo minha amiga, mesmo depois dos trâmites na justiça, as desditas sonoras continuam. E cada vez mais ferozes.
A gente tenta fugir. Pega a estrada sem rumo em busca de sossego.  Descobre praias paradisíacas. E quem está lá, atazanando na areia? A selvageria sonora. Dá meia volta. Ganha o mundo, sobe ladeira, desce ladeira, penetra no escondido da mata, e vai dar na beira de um igarapé maravilhoso, aquele da água friínha de engilhar a ponta dos dedos, num mergulhinho mais demorado. Foi lá que o destino colocou o infeliz com o controle na mão. Fiquei em transe. Não mergulhei na água geladinha, não bebi nada, não comi nada. Fiquei teso, só observando o sujeito operando o patrimônio cultural dele. Embora várias famílias estivessem ali, era ele quem comandava. Havia uma hora de profunda agressão. Um locutor gritava desesperadamente, amparado por um pop eletrônico, dentro das poderosas caixas de som. Nessa hora ele colocava o volume do máximo. Aquilo até hoje está na minha cabeça (é a tal da piração, do trauma). Quer saber, borimbora daqui, sugeri ao meu povo, humilhado.

Na volta, paramos na estrada e compramos uma boa partida de pamonha. Ainda bem, meu Deus, ainda bem que existe pamonha, para dar algum sabor à vida. 

Um comentário:

  1. Ainda bem que temos as suas crônicas para nos representar. Fico imaginando eu chegando em Belém e já desde o aeroporto começar a ter chiliques com a poluição sonora.

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