Sonho de
carnaval parte II
Tempos atrás,
ainda quando este caderno se chamava Cartaz, escrevi a crônica “Sonho de
carnaval”, que agora, pelos dias de hoje, tirando a prova dos nove e a
contraprova das eras, seria a dita parte I de uma sequência inata. Naquelas
linhas que tracei, aninhado à saudosa tranquilidade interiorana da Vila dos
Cabanos, que nos permitia dormir de janela aberta e com o botijão de gás acomodado
seguro e íntegro no lado de fora da casa, adiantava que meus sonhos de carnaval
seriam um desfile sob os holofotes da Aldeia Cabana e o bailado gingado com uma
morena, malandramente paramentado com minha fantasia de passista: sapato branco
purpurinado, camisa listrada e um chapéu Panamá de fitas vermelhas largas.
O que torna é
que nem realizei minha vontade.
Hoje depois do
caso passado, abandonei os delírios e meus desejos são mais modestos. A mim me
basta um arrastão de sujo com uma fieira de banheiros públicos pelo caminho,
porque olha, brincar carnaval de rua sem ter lugar para as devidas desobrigas
não tem combate. É malinar na certa com a gente e com a cidade.
Aprecio o
carnaval de rua. Desde o tempo do ‘Aguenta o Tombo’ eu me assanho em caminhadas
quilométricas como folião dos mais animados. A mim me agrada a pândega, o
gracejo despretensioso, o samba dançado com liberdade, o desapego a rixas ou
competições dos desfiles oficiais. Na rua, o que vale é a diversão. Vale tudo
que anime. Vale a soltura. Vale tirar sarro com o mascarado bofó. Vale voar. Só
não vale a apatia. O negócio é que o povo bebe. Aí já viu. Algo deve ser
providenciado.
Sei da história
trágica do príncipe Tycho Brahe que morreu de complicações fisiológicas por
prender o xixi. Ele foi parceiro de Kepler na formulação da harmonia cósmica. Ajudou
o gênio alemão naquelas questões bobas, como dinheiro para se manter, por
exemplo. E com a mesma gentileza, dividiu horas dos muitos anos que passaram
juntos, observando o comportamento do planeta Marte. O movimento do planeta vermelho, de tempos e
tempos, aumentando e diminuindo de tamanho é que deu a dica para Kepler deduzir
a trajetória elíptica dos planetas ao redor do Sol. A famosa Primeira Lei de
Kepler.
Pois não é que o
príncipe, detonado que era, feliz da vida por partilhar das conquistas de
Kepler, fez uma senhora farra na ilha que governava. Convidou uma legião de
nobres não menos fanfarrões, sentou-se à mesa em posição de destaque e se danou
a comer e beber. Tão interessado e, literalmente, inebriado estava por aquele
momento, que o príncipe Tycho se recusava a levantar para aliviar a bexiga. Morreu
de dor de urina.
No carnaval de
rua cabe uma fantasia de príncipe, um destempero fugaz, uma euforia de momento:
vênias mundanas argumentadas por uma gelada aqui, outra ali. Deste prazer de
rua, não tenho bronca nenhuma. Faz parte. Está no DNA do sapiens, a síntese da
alegria, do conforto. O baticundum do tambor potencializa as nossas químicas
naturais. E, príncipes das avenidas, nos permitimos travessuras. Entusiasmos.
Fidelidade a cada instante de contentamento e gozo. Mas se pintar aquela
dorzinha, convém se bater pelo provimento da demanda. A fisiologia da alegria
pode dar em tristeza.
Aprecio o
carnaval de rua. Já tive sonhos ousados para as noites de folia. Imaginei luzes
coloridas, confetes, serpentinas aos montes. Uma morena deste tamanho de par
comigo num bailado elegante ante a platéia da Aldeia Cabana. Hoje, menos, menos.
A simplicidade das ruas já me satisfaz. Mas pera! Algo deve ser providenciado.
Os príncipes, os pés das mangueiras seculares e as fachadas coloniais da Cidade
Velha agradecem.
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