O
menor dinossauro do mundo
Para nós, era um
presente da hora. Indicado para a idade. Tinha função pedagógica. Cores que
despertavam estímulos visuais, percepções de formas. Consistia na imitação de
uma casa. As paredes eram em vermelho forte. Encarnado. O telhado, amarelão
lustroso. Espalhafato de doer nos’oinhos. Dentro, peças de encaixar. Boleadas,
em quina, chanfradas. Elementos de uma coleção de contatos certeiros. Uma
casinha harmoniosa recheada de partes de um todo que se procurava. Cabia ao
Argelzinho, juntá-las.
E foi assim
provocando estes encontros que ele se encontrou com a infância obreira e fiel
às impressões.
Aí, passou,
passou. Ele teve, teve, brincou a valer, aceitando as regras da casinha. Até
que a formalidade motora deu lugar à traquinagem, à liberdade criadora. O tempo
voou. Ele entendeu, atendeu às conformidades do concreto, assimilou o
aprendizado objetivo, reconheceu os sinais com esmero. E com a mesma atenção
que os reconheceu, os colocou de lado e permitiu-se a abstração. Arrebatou a
casinha de paredes vermelhas e telhado amarelo para o mundo das ilusões. Para a
seara do ‘pra dizer’, para o universo do ‘faz de conta’.
Agregou às
pecinhas de montar, elementos diferentes, descombinou tudo. Eu ficava só na bicora
daquela insubordinação. Muito discretamente, prestava atenção àquela
desenvoltura anárquica que Argelzinho engendrava usando a antiga casinha.
Sim, porque não
era mais casinha. Agora era a caixa onde ele guardava todas as suas fantasias.
Chegava da escola,
tomava banho, passava um talquinho, almoçava, ficava por ali um pedacinho,
depois se recolhia ao quarto para um teretetê com um mundo só dele. Sentava no
chão, abria a caixa (ao telhado amarelão era dada a função coadjuvante de ser
apenas a tampa da caixa). De lá, retirava as antigas peças coloridas e os
outros insólitos componentes. Petecas de várias cores, algumas, já bandadas;
Letras do alfabeto moldadas em plástico endurecido; Um dinossauro anão, o menor
dinossauro do mundo, menor até que uma lagartixa; Um feixe de lápis Faber
Castel todo roído nas pontas; Tampinhas de refrigerantes diversos; Miniaturas
de personagens dos desenhos animados mais famosos da época, acho que aqueles do
Pokémon e alguns outros Cavaleiros do Zodíaco. Tinha mais coisas... um punhado
de tento-vermelho, cartas de baralho, pedras de dominó, ilhoses, pregadores de
roupa. Tampas de caneta. Vidrinhos de essências amazônicas, rolhas de vinho,
bijuterias enegrecidas. Fivelas doiradas de bolsas. Tanto bregueço tinha
guardado ali. E após descansar do almoço, na solidão do quarto, os tirava da
caixa e dava vida a toda aquela tralha.
Às vezes eu ia
devagarinho, e sem que ele percebesse, o surpreendia em uma aventura. E eram
várias. Futebol entre os times do lápis de cor contra o time do A maiúsculo.
Viagem interestelar com a turma do Ash e um punhado de tento-vermelho. Guerra
valendo do exército do menor dinossauro do mundo contra as tampas de canetas.
Todos falavam. Argelzinho narrava e dublava cada um. O que eu achava mais legal
era a participação dos vidrinhos e do A maiúsculo. Eles eram sempre os
artistas, os artilheiros. Imbatíveis.
Durante anos, o
divertimento do meu menino foi a caixa das fantasias. No quarto, sozinho,
inventando. Se reinventando. Eu espreitava, admirava aquele envolvimento,
aquele mergulho no mundo das maravilhas.
Esta semana,
Argelzinho vai fazer 19 anos. Tá um teba d’um preto. E eu aqui, ó, revivendo
aquelas tardes anárquicas...felizes...as contendas do menor dinossauro do
mundo... e o papaizinho só bicora, discretamente participando daquele
encantamento.
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