sábado, 1 de março de 2025

crônica da semana - uma boa pessoa

 Uma pessoa boa

Nas últimas semanas, convivi, na rotina, com uma piada instigadora. Dizia que o jeito era a gente mudar, melhorar a conduta, ganhar vaga no lado bom da força porque, se não aguenta 10, 15 dias de calor intenso; no inferno, mergulhado na fervura eterna é que não vai se dar. O jeito é lutar para ir pro céu.

Calha dar atenção à dica. Pelo certo, experimentei este treino. Foram alguns dias fora de casa passando por tudo em quanto de termos e jeitos de uma vida além dos nossos costumes e das baixas latitudes. Vivência diferente daquela de férias ou fugidinhas rápidas. Coisa mais comunitária. Enraizada. De ir à padaria todo dia, à feira nas quintas, reclamar da coleta de lixo, cuidar com a pavimentação deficitária e traiçoeira das ruas, levar um di cumê simples que seja para o morador da calçada que ao nascer do sol, desarma seu nicho montado um pouco adiante da escola tradicional do bairro. Um período vencido a cada instante e motivado por um destaque, para nós paraenses, sem segredos. O calor.

Não deveríamos estranhar. Mas estranhamos e sentimos os efeitos do calor, na tez, no ânimo. Por outro lado, deu no aprendizado. São efeitos diferentes gerados por eventos que não conhecemos. Nos batemos com fenômenos até então apenas títulos distantes e específicos como sistema adiabático ou bloqueio atmosférico e até mesmo cavados, ressurgência... Alarmes no telefone alertando sobre notações térmicas extremas. Todos, nomes táticos compondo técnicas para explicar um céu azul azul, sem nehuma nuvem por dias e dias. E um desconforto térmico de tirar paraense da morga.

Quando ouvimos, agora voltando para Belém, o piloto do avião anunciar que estava descendo dos dez mil pés e que iniciava manobras de pouso, olhei pela janela o pacote de nuvens densas que atravessaríamos até chegar ao solo. Detive o olhar, dimensionei, aferi, estendi a visão ao maior alcance. Localizei tonalidades diferentes de cinza. Sinais de chuva. Alertei minha companheira. Taí, para que não via uma nuvem carregada faz tempo, temos aí embaixo um cardápio variado. A turbulência ao atravessarmos aquela úmida camada nos avisava que estávamos em outras latitudes, regressando aos nossos comuns dias amazônicos. Sob o comando da zona de convergência intertropical, subordinados à dinâmica da evapotranspiração e ao traçado climático equatorial que não nos deixam faltar, de jeito e maneira, e em tempo nenhum, as nuvens no céu.

Contrastes, particularidades, intimidades de um planeta que precisa ser cuidado.

Hora de se pensar as contradições, as resultantes de impacto que as alterações climáticas apresentam. Principalmente. E, é necessário que se der ênfase, principalmente quanto à intensidade dos eventos (lembremos da fervura do inferno). Precisamos urgentemente, diante do quadro de não retorno, de reformularmos políticas públicas ambientais, sanitárias, estruturais, e muitas no campo da engenharia. Precisamos entender como reestruturar as cidades para a vida com temperaturas acima de 40 graus (ou alagamentos espetaculares ou vendavais). O exemplo disso foi um acidente registrado em Magé, no Rio de Janeiro, quando um trem descarrilou por causa da dilatação dos trilhos a partir de uma temperatura medida na estrutura de 71 graus Celsius. Já pensou? Temos que redimensionar materiais e técnicas. É uma corrida contra o tempo. A Europa, por exemplo, que vem sofrendo com ondas de calor fortíssimas nos últimos anos, já tem uma vanguarda de engenharia agindo. Novos conceitos urbanos de proteção e reação, devem ser implementados com urgência para amenizar sofrimentos. O calor mata.

As conseqüências das mudanças climáticas são gravíssimas e a gente sentindo assim de palmo em cima os efeitos de um bloqueio atmosférico, se enche de dor e apreensão.

Mas tem negacionista que diz poder pagar por tudo. Mesmo diante da fervura, queixa-se ter dinheiro pra superar as alterações do clima. Não precisa sair de casa, tem ar condicionado, não tem que pegar transporte público, submeter-se ao tórrido dos dias e dos trilhos. Acha que já agora, liminarmente, usufrui do refrigério do céu.

 

 

Um comentário:

  1. Essa crônica tem que estar em todos os meios de comunicação do mundo. Parabéns, Sodré!!

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