O escriturário e todos os nomes
Não
se parecia em nada com o tipo monótono, de modos contidos, sempre discreto.
Personagem quase ausente, que organiza sua rotina escondido em uma mesa no
fundo da sala de uma repartição pública; ou mesmo no escritório de uma firma de
médio porte perdida nos apertados de ruas do centro. Mas era ele, o escriturário,
e eu o localizei ali, na ala dos brincantes mais animados.
Em
verdade, o carnaval é a realização dos contrários, a menção aos invisíveis, o
domínio dos rejeitados, o riso dos tristonhos, o beijo dos solitários, a
exaltação dos pilheriados, a superação dos combalidos. É o céu na terra de um
povo feliz. Faz a satisfação dos escriturários e outros tantos e todos os nomes
que se reproduzem na sociedade. É assim como o personagem de Saramago ou um
coadjuvante de algum romance de Machado de Assis marcado pelo padrão na
personalidade sisuda, na postura retilínea (embora o ligeiro balanceio no andar).
Eu
o vi tomado de uma alegria alheia, de um transe bom, entregue a movimentos
dispersos, livres, evoluindo, soltando a voz no samba-enredo e até arriscando
uma ginga de samba no pé, abrigado pela pequena multidão litisconsorte. Não
parecia em nada o tipo ordinário, escravizado pelas formalidades da função.
A
imagem do escriturário tão bem representado nos romances como emblema de
conduta reta, adiciona mais um item ao caráter subversivo do carnaval. O
carnaval é a negação do escriturário.
Ou
de tantos outros e todos os nomes.
Vale
a pena aqui, lembrar seu Dé. Ou Deoclidiano. Nosso vizinho de porta na vila em
que morávamos na Mauriti.
Era
o tipo comum e monótono. Embora o ao pegado das casas da vila nos estimulasse a
intimidade, ou no mínimo, a cortesia, não dava trela pra comunidade. Entrava e
saía de casa ofertando um econômico bom dia, boa tarde. Nessa ordem. Não por
mal que era. Mais pelo calibre dele mesmo. Postura, jeito de ser. Era
funcionário dos correios. Operário padrão com medalha colocada no peito pelo
Figueiredo. Tinha todas as promoções na carreira, limitadas, claro, à função de
carteiro. Nunca faltou. Respeitado na igreja, católico tradicional, ministrava
palestras para cursilhistas. Em casa era homem de poucas palavras, segundo sua
companheira que, taí, era bem mais dada com o pessoal da vila. Sabia dos filhos
porque a vizinha lhe dava a missão do visto nos cadernos. Fora uma saída com um
dos meninos no colo e o outro arrastado pela autoridade da mão, não era de
estar batendo perna na rua. Era de casa pro trabalho e do trabalho pra casa...
Até
chegar o carnaval...
Da
feita que o sábado gordo despontava, já era. O escriturário, o carteiro, seu Dé
de todos os nomes se destrambelhava das ideias. Ele desfilava em todos os
blocos e escolas de samba possíveis. Entrava na vila só para trocar a fantasia.
E era outra pessoa. Fazia gracinha com as crianças, carregava as vizinhas mais
velhas no colo, trocava prosas animadas pela janela. A casa ficava aberta e as
marchinhas de carnaval dominavam a frequência do três em um. Não se tem relato
que bebia. Virava o comportamento de forma sóbria, consciente.
O
carnaval e suas magias. Suas revoluções. Operações de resistência, de
superação. Enredos ancestrais. Exposição de saberes ofuscados, metamorfoses
pessoais. Personalidades oprimidas eclodem do centro interminável de transformações.
O que se tem de desânimo ou pesar contamina-se com os ares indisciplinados da
alegria.
Festa
redentora que faz surgir na avenida harmonizada em cores e movimentos, uma luz,
que no dia a dia do seu Dé ou daquele escriturário que identifiquei na ala colorida,
infelizmente não se mostra.
Quando
acabava o carnaval, seu Dé voltava a ser o carteiro condecorado, o vizinho descortês.
Todos os nomes, o escriturário, voltam à sensaboria dos dias.
Pra
mim, a vila perdia a graça porque gostava mais era do seu Dé destrambelhado.
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