sábado, 8 de março de 2025

crônica da semana - duas taças

 Duas taças

Algo de novo acontecia naquelas páginas. Uma história contada em arranjos libérrimos, sem amarras de rótulos ou de estilo, marcada por palavras proibidas e dores confrontadas. Trajetórias traçadas entre sonhos e armadilhas do destino. Uma construção adiante dos romances que eu estava acostumado a ler na época, aqueles que tinham composições dogmáticas. Não trazia a severidade estética parnasiana, nem a racionalidade mundana realista. Distanciava-se dos Modernos rincões regionalistas de Graciliano, dos versos geométricos Concretizados em vazios; e se realizava, se tornava uma história plena, comovente, acessível ao comum dos leitores. Grandiosa na essência, no íntimo humano. Entendo se tratar de uma narrativa autobiográfica. A autobiografia, ora veja, contra-indicada, atemporal, de um jovem de 20 e poucos anos (tinha aproximadamente a minha idade).

A edição que tenho, é aquela com a capa de fundo preto e destacando em primeiro plano, duas taças quebradas, impactadas por um contraste em vermelho fazendo a menção de sangue derramado. Edição do Círculo do Livro datada de 1988.

“Feliz Ano Velho” foi lançado em 1982, três anos após o acidente de Marcelo. Minha memória localiza lá atrás em Rondônia, meu primeiro contato com o livro, isso entre 1983 e 1986. Daí que acho estranho o meu exemplar datar uns anos mais distantes. Penso que em Rondônia tenha tomado emprestado de alguém e só tempos depois, efetuado a compra do meu exemplar direto com o Círculo. É importante identificar esta linha do tempo porque antes, bem antes de 1988 eu já admitia a influência decisiva do jeito, da desenvoltura literária de Marcelo Rubens Paiva na minha vida, na maneira como entenderia o fazer literário e também como definiria a minha forma de escrever dali por diante. A edição de 1988 talvez tenha me empurrado para além. Embora desde lá atrás já praticasse o desapego estético em cada livro que lia, e também nas minhas pretensões criativas, somente neste ano é que me senti seguro para elaborar e divulgar a primeira narrativa em prosa na forma que referenciasse dali pra frente, meu texto.

Hoje se tenho algumas publicações, premiações que me deram até um bom dindim; se mantenho uma coluna no jornal há quase vinte anos ou se acumulo mais de mil crônicas publicadas na internet é, também, porque um dia, dei com a extraordinária habilidade narrativa de Marcelo, disseminada nas páginas daquele livro de capa dura com duas taças quebradas no destaque em primeiro plano.

As conquistas do filme ‘Ainda estou aqui’ evidenciam uma teimosia nossa de lutar pela arte. O filme despontou após um período de desmonte em todas as frentes de trabalhos culturais. Representa, o filme, de certa forma, um renascimento das cinzas de uma fênix impulsiva, alimentada de um desejo transformador que não se pode reprimir. E mais ainda, traz, na origem, a linguagem reveladora de Marcelo Rubens Paiva (que já se mostrava para mim lá atrás, nos primeiros anos da década de 1980).

O primeiro livro dele, com duas taças na capa nos coloca no mundo de um jovem que passa por momentos de violência e dor. O desaparecimento do pai pelas mãos da repressão e a fratura da quinta cervical são traumas que ressignificam as mais simples operações cotidianas do corpo e da alma de Marcelo. O jeito como ele nos conta a história, tenho como a eficácia de uma literatura humanizada. É a técnica do dizer imediato, sem rodeios, por isso, é de toda sorte alentadora, alinhada em emoções, verdades, reconhecimentos, empatias, solidariedades. Uma maneira de escrever que me fez prestar reparo em detalhes livres de travas ou amarras. Uma narrativa que alterou meu modo de ver, de ler, entender, viver e escrever histórias. O livro com duas taças na capa denuncia um crime violento, covarde, de um regime cruel e também corrige os rumos que damos ao corpo, à alma.

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