Duas taças
Algo
de novo acontecia naquelas páginas. Uma história contada em arranjos
libérrimos, sem amarras de rótulos ou de estilo, marcada por palavras proibidas
e dores confrontadas. Trajetórias traçadas entre sonhos e armadilhas do
destino. Uma construção adiante dos romances que eu estava acostumado a ler na
época, aqueles que tinham composições dogmáticas. Não trazia a severidade
estética parnasiana, nem a racionalidade mundana realista. Distanciava-se dos Modernos
rincões regionalistas de Graciliano, dos versos geométricos Concretizados em
vazios; e se realizava, se tornava uma história plena, comovente, acessível ao
comum dos leitores. Grandiosa na essência, no íntimo humano. Entendo se tratar
de uma narrativa autobiográfica. A autobiografia, ora veja, contra-indicada,
atemporal, de um jovem de 20 e poucos anos (tinha aproximadamente a minha idade).
A
edição que tenho, é aquela com a capa de fundo preto e destacando em primeiro
plano, duas taças quebradas, impactadas por um contraste em vermelho fazendo a
menção de sangue derramado. Edição do Círculo do Livro datada de 1988.
“Feliz
Ano Velho” foi lançado em 1982, três anos após o acidente de Marcelo. Minha
memória localiza lá atrás em Rondônia, meu primeiro contato com o livro, isso
entre 1983 e 1986. Daí que acho estranho o meu exemplar datar uns anos mais
distantes. Penso que em Rondônia tenha tomado emprestado de alguém e só tempos
depois, efetuado a compra do meu exemplar direto com o Círculo. É importante
identificar esta linha do tempo porque antes, bem antes de 1988 eu já admitia a
influência decisiva do jeito, da desenvoltura literária de Marcelo Rubens Paiva
na minha vida, na maneira como entenderia o fazer literário e também como
definiria a minha forma de escrever dali por diante. A edição de 1988 talvez
tenha me empurrado para além. Embora desde lá atrás já praticasse o desapego estético
em cada livro que lia, e também nas minhas pretensões criativas, somente neste
ano é que me senti seguro para elaborar e divulgar a primeira narrativa em
prosa na forma que referenciasse dali pra frente, meu texto.
Hoje
se tenho algumas publicações, premiações que me deram até um bom dindim; se
mantenho uma coluna no jornal há quase vinte anos ou se acumulo mais de mil
crônicas publicadas na internet é, também, porque um dia, dei com a
extraordinária habilidade narrativa de Marcelo, disseminada nas páginas daquele
livro de capa dura com duas taças quebradas no destaque em primeiro plano.
As
conquistas do filme ‘Ainda estou aqui’ evidenciam uma teimosia nossa de lutar
pela arte. O filme despontou após um período de desmonte em todas as frentes de
trabalhos culturais. Representa, o filme, de certa forma, um renascimento das
cinzas de uma fênix impulsiva, alimentada de um desejo transformador que não se
pode reprimir. E mais ainda, traz, na origem, a linguagem reveladora de Marcelo
Rubens Paiva (que já se mostrava para mim lá atrás, nos primeiros anos da
década de 1980).
O primeiro livro dele, com duas taças na capa nos coloca no mundo de um
jovem que passa por momentos de violência e dor. O desaparecimento do pai pelas
mãos da repressão e a fratura da quinta cervical são traumas que ressignificam
as mais simples operações cotidianas do corpo e da alma de Marcelo. O jeito
como ele nos conta a história, tenho como a eficácia de uma literatura
humanizada. É a técnica do dizer imediato, sem rodeios, por isso, é de toda
sorte alentadora, alinhada em emoções, verdades, reconhecimentos, empatias,
solidariedades. Uma maneira de escrever que me fez prestar reparo em detalhes livres
de travas ou amarras. Uma narrativa que alterou meu modo de ver, de ler,
entender, viver e escrever histórias. O livro com duas taças na capa denuncia
um crime violento, covarde, de um regime cruel e também corrige os rumos que
damos ao corpo, à alma.
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