sábado, 29 de março de 2025

crônica da semana - ganhamos emilinha

 Ganhamos Emilinha

Sabe aquela coisa que a gente poderia ter feito, não fez, depois ficou se batendo, se mordendo de arrependimento?

Emilinha Borba e Adelaide Chiozzo estavam em Belém. Dariam uma entrevista na rádio Cultura pela manhã. Eu morando aqui na Pedreira, bem dizer ao pegado, na certa cultivando o ócio àquele período do dia, e fanzésimo das duas, bem que poderia ter batido perna até lá, ao menos para vê-las de longe. Não fui. Nunca vi Emilinha ao vivo.

Conhecia Adelaide (“que beijinho doce/que ele tem...”) e Emilinha (“assim se passaram dez anos...”) das sessões na TV, que em épocas distantes reproduziam no horário da tarde, filmes clássicos da Atlântida, da Vera Cruz e nos apresentavam um elenco fascinante que incluía Grande Otelo, Oscarito, José Lewgoy, Eliana, Anselmo Duarte, Tônia Carreiro, entre tantas estrelas.

Minha avó era ligada na programação e nos chamava, a netaiada pra acompanhar com ela a aventuras de Oscarito e companhia. Eram tardes maravilhosas. Que reservavam dentro de mim, preciosos guardados. O riso farto de minha avó, os elogios que ela fazia à beleza das atrizes, uma descrição aqui, outra ali, dos acessórios e balangandãs que o elenco usava nos musicais. Minha avó interagia com as cenas. Cantava as canções junto com a orquestra. Mamãe ia na mesma pisada. Se estivesse em casa, eram as duas em frente à TV. Então era um momento em que vivíamos abrigados às matriarcas, sentindo e reagindo igualzinho a elas. Nos contaminando de cenas em preto e branco e do desprendimento que a arte do cinema inocula na gente. Quando digo que sou avovozado, amamãezado, é disso que falo.

Nessa leva, virei um admirador atento de Emilinha. Acompanhei reportagens que narravam a carreira dela. Os títulos de Rainha do Rádio e as disputas com Marlene (mais tarde eu conheceria com mais detalhes, o trabalho da cantora Marlene, que, ao contrário de Emilinha, tive a oportunidade de ver em duas oportunidades aqui em Belém. No teatro com “A Ópera do malandro” e no Projeto Pixinguinha cantando, interpretando e botando pra chulear no ginásio da UFPA. Um fenômeno! Uma artista espetacular. Justifica os sucessos que teve nas disputas pela coroa do rádio. Era um furacão. Virei fã de Marlene, também).

Meu coração, no entanto, era de Emilinha. Por vários motivos ligados ao talento dela, mas, mais ainda pela relação afetiva que a cantora proporcionava dentro da minha família. Esta relação se encorpava mais ainda porque minha mãe era uma cantora doméstica, de casa, dos instantes suaves... e que me encantava. Numa época em que Belém passava por eventos de falta de luz toda noite, o falado blecaute, mamãe nos presenteava com sua voz. Atava a rede na sala, nós nos arranjávamos pelo chão, nos acomodávamos no batente da porta ou em outra rede ao pegado e nos dávamos a ouvir mamãe só na capela.

Trago nos meus guardados do coração, minha mãe cantando “Dez anos”, sucesso disparadíssimo de Emilinha. Durante muito tempo, e até hoje quando ouço esta canção traço uma ponte até alcançar a margem dos meus afetos, as tardes assistindo aos filmes com minha avó, as aparições de Emilinha nos musicais; e os tempos sem luz em Belém com mamãe adoçando o amargo da vida e clareando o escuro da noite com aquela voz de nos emocionar, nós, a filharada espalhada pela sala, amparada às emoções.

Dessa forma, e com estas marcas gravadas dentro de mim, me definindo, me guiando, quando iniciei minha trajetória nesta coluna, no final de março de 2006, optei por fazer uma homenagem a estas mulheres. Emilinha tinha morrido dias antes; minha avó reconhecia o mundo com dificuldades, entregue ao mal implacável da idade; e minha mãe, no céu e nos meus sonhos, vibrando em doçuras musicais.

“Perdemos Emilinha” foi minha primeira publicação aqui na coluna. E assim, de lá a cá, se passaram 19 anos. Penso que, em verdade, ganhei Emilinha.

2 comentários:

  1. Hélio de Souza Santos29 de março de 2025 às 07:56

    Parabéns meu nobre e caro Raimundo Sodré. Ganhamos todos nós que temos você nos presenteando toda semana nas páginas de O Liberal e aqui no Blog há 19 anos. Eu ainda mais privilegiado, pois sou seu leitor desde a década de 1990.

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  2. Sodré, sempre nos conduzindo com a natural correnteza da linguagem viva, enérgica, emotiva...
    Me adentro em cada frase do Sodré porque o texto é bem dito.
    Viva a boa história contada!

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